segunda-feira, 31 de julho de 2023


31 DE JULHO DE 2023
CARPINEJAR

Barbie é Pinóquio

Nada se cria, tudo se transforma. O filme Barbie tem como pano de fundo a história de Pinóquio. A versão feminina ocultou a origem, mas é igualmente a trajetória acidentada do herói em busca da humanização. A boneca de plástico vive em um mundo rosa de mentiras felizes chamado Barbielândia, viaja até a realidade da complexidade de sentimentos, é ridicularizada, sofre, começa a chorar e a rir, encontra-se com sua criadora e quer ser uma mulher de verdade. Ou melhor, da verdade.

É o mesmo eixo da narrativa do italiano Carlo Collodi, adaptada por Disney. Gepeto é Ruth Handler, cofundadora da empresa norte-americana Mattel, que concebeu o brinquedo de feições crescidas homenageando a sua filha Barbara.

O grilo falante é Gloria, mãe que pena com o distanciamento de sua filha adolescente e se torna a conselheira e incentivadora nas primeiras crises de identidade de Barbie. O parque de diversões de Pinóquio é Venice Beach, um dos pontos turísticos mais importantes de Los Angeles, que assume na ficção o território da maldade (assédios e flertes inconvenientes).

A baleia é a empresa Mattel, com seu estômago de corredores e salas intermináveis, que não aceita falhas e deseja tirar de linha as bonecas com defeito. Com direção de Greta Gerwig (Lady Bird) e tendo como protagonistas Margot Robbie, Ryan Gosling e America Ferrera, a obra é essencialmente ideológica, no sentido de que conversa mais com o público do que propõe perguntas para os próprios personagens. São desfiladas tiradas sarcásticas, quase como stand-up crítico sobre o nosso estilo descartável de vida.

Num tom ingênuo, agridoce e exclamativo, faz o espectador se dar conta dos absurdos da sociedade moderna e dos preconceitos sexistas em relação às mulheres. O melhor do filme está fora do filme, na narração irônica em off apontando o que permanece como uma ditadura da imagem e das convenções.

Existe, entretanto, uma perigosa adulteração da realeza da Barbie, como se ela nunca tivesse sido alienante e consumista, como se nunca tivesse padronizado um ideal de beleza irreal, com as medidas anoréxicas de um corpo impossível de modelo, de cintura fina e pernas longas.

Se antes dela realmente as meninas brincavam com bonecas bebês para aprenderem a ser mães, depois dela, as meninas passaram a brincar com o protótipo adulto para aprenderem a ser esposas. Barbie já foi a tipificação americana da submissão doméstica, da companhia posada, passiva e dependente, apenas preocupada com o guarda-roupa, a enfeitar o universo patriarcal.

Surge agora como um ícone revolucionário da diversidade desde a sua origem, promovendo versões de Barbie de todas as etnias e profissões. Bem sabemos que essa inclusão apenas se consolidou nos anos 1990, na carona das transformações inexoráveis da representação da estrutura familiar nas mídias.

Nesse escopo, Barbie seguiu a maré. Não ditou a evolução dos direitos feministas, porém acompanhou os progressos, convertendo os novos ideais em dinheiro e consumo. Incute-se a ideia de que a Barbie sempre sinalizou as escolhas infinitas da mulher, muito além da maternidade e do casamento, principalmente ao retratar 180 carreiras recentemente.

Nos seus primórdios, era mais conhecida pelas tendências da moda e troca de figurino do que pelas mutações de comportamento. Tanto que a Barbie nasceu olhando para os lados, com medo, com recato, não querendo incomodar, não podendo encarar de frente seu parceiro masculino. Sua aparência só mudou em 1971, quando o seu olhar terminou ajustado para a frente.

O filme põe agora os olhos da Barbie para si mesma. É uma outra rotação, outro ponto de vista. Não espere romance e beijo salvador de Ken. Não há final feliz. Pois o homem ainda se mantém estereotipado, não definiu o seu lugar, só sabendo reagir por extremos: a favor ou contra a mulher.

CARPINEJAR

31 DE JULHO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

A riqueza da terra

Enquanto o mundo vive dias adversos sob o impacto das mudanças climáticas, discutem-se cada vez mais formas de promover o desenvolvimento abandonando o conceito antigo de que o progresso produz inevitáveis danos colaterais ao ambiente. É um debate que vai muito além de grandes questões como a substituição de combustíveis fósseis por energias renováveis. Passa, inclusive, por enxergar novas alternativas para regiões ou cidades afastadas dos grandes centros buscarem a prosperidade sem que isso signifique atrair investimentos portentosos ou modificar seus modos de vida. Pelo contrário, a grande riqueza pode estar na valorização de suas peculiaridades naturais e humanas.

Duas iniciativas exemplares com essa concepção foram apresentadas na reportagem "União pelo turismo e a preservação", assinada por Jhully Costa e publicada no caderno DOC da superedição de Zero Hora. Narra como o município de Caçapava do Sul e a região da Quarta Colônia, ambos na região central do Estado, tiveram sucesso em uma mobilização que, com universidades à frente, uniu poder público, empresários locais e a população para serem reconhecidos como geoparques mundiais pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Como define a própria Unesco, geoparques são "áreas geográficas unificadas, onde sítios e paisagens de relevância geológica internacional são administrados com base em um conceito holístico de proteção, educação e desenvolvimento sustentável". É uma chancela de peso, que impulsiona as possibilidades de maior dinamismo econômico baseado em atividades que convivem de forma harmoniosa com a natureza e os traços culturais de sua população. Entram aí o ecoturismo e empreendimentos associados, como nas áreas de gastronomia e hospedagem, os traços históricos, a valorização de características naturais como a geologia, o relevo, a paisagem e as descobertas paleontológicas que contam uma parte do passado longínquo do planeta.

O Geoparque Quarta Colônia, que abrange nove municípios, tem aspectos únicos, como a grande riqueza de fósseis de alguns dos primeiros dinossauros que pisaram sobre a Terra, aliados à cultura dos imigrantes italianos. O Geoparque Caçapava tem como grande diferencial a diversidade de formações rochosas exuberantes e antiquíssimas, que há décadas atraem um grande número de geólogos e estudantes da área. 

Mais recentemente, também despertou a atenção dos amantes de esportes de aventura. A cidade é a capital gaúcha da geodiversidade, com mais de 30 geossítios catalogados. O reconhecimento oficial da Unesco veio para ambos em maio. É recente. Há muito, portanto, a desenvolver. O reconhecimento da Unesco, com a atenção que desperta, pode impulsionar novos empreendimentos para oferecer melhor estrutura de recepção a visitantes. E gerar renda a partir de suas georriquezas.

O Brasil passou a ter cinco geoparques, sendo três no Rio Grande do Sul. O outro que fica no Estado, junto com Santa Catarina, é o Caminhos dos Cânions do Sul. Os demais são Seridó (RN) e Araripe (CE). No mundo, são 195, espalhados por 48 países. Mas há outros três no território gaúcho em busca da titulação: o Raízes de Pedra, também na Região Central, o Paisagem das Águas, no sul do Estado, e o do Vale do Rio Pardo. Espera-se que tenham sucesso e, junto a outros empreendimentos e parques vocacionados para o ecoturismo, consolidem o Rio Grande do Sul como um modelo de local onde a natureza preservada e explorada de forma racional é um ativo alternativo para o desenvolvimento econômico e social.


O padroeiro dos motoristas

A manhã ensolarada de ontem em Canoas, na Região Metropolitana, foi palco para mais uma demonstração de fé e amor à profissão de motorista. A 66ª procissão em honra a São Cristóvão reuniu dezenas de veículos, entre caminhões, carros e vans.

A imagem do santo padroeiro dos motoristas partiu do Santuário São Cristóvão, no bairro Igara, logo após a missa presidida por Dom Jaime Splenger. Na sequência, os demais veículos seguiram a procissão pela BR-116. Cerca de 50 pessoas utilizaram a vista privilegiada do viaduto da Avenida Boqueirão para observar o comboio, que inundou a rodovia com sons de buzina.

Entre os observadores, estavam, inclusive, motoristas já aposentados, que dedicaram a vida à boleia, como Ciro Rolim Leite, 73 anos. Morador de Canoas, ele acredita que a proteção divina é essencial para quem trabalha como motorista, principalmente por conta dos perigos das estradas que, na opinião do idoso, estão mais traiçoeiras do que no passado:

- Eu sou muito grato a São Cristóvão. Já pedi bênçãos a ele e fui receber. Hoje em dia, tem de ter muita fé, olho vivo e pé ligeiro.

Churrasco

Além da questão religiosa, a festa em honra a São Cristóvão é vista como uma oportunidade de reunir amigos. Enquanto a fila de veículos seguia pela rodovia, havia caminhões e carros estacionados nas laterais, com música gaúcha e sertaneja e até churrasco improvisado em churrasqueiras de latão. Nessa turma, estava o caminhoneiro Arisson Lemes, 37 anos, que trabalha com transporte de carga. Para ele, que participa desde 2015, o evento também é momento de agradecer pelo sonho alcançado: ser motorista.

- É um sonho desde criança. Já vem de pai, de tio. Meu avô já era caminhoneiro. E hoje estamos aí, seguindo a linhagem.

Também havia estreantes na procissão. Após ter viajado por todo o Brasil ao longo da carreira, Eduardo Ramos, 67 anos, acompanhou o movimento pela primeira vez. Morador de Sapucaia do Sul, ele agora leva uma vida pacata, mas sem abandonar a cabine de um caminhão. Atualmente, as viagens estão restritas ao RS.

- Vou morrer aqui dentro - define, apontando para o seu caminhão, logo atrás.

RAFAEL FAVERO

31 DE JULHO DE 2023
CLÁUDIA LAITANO

Tolstói na praça

Tolstói não é russo. Ou talvez seja. Não sei que língua ele fala. O que sei é que passa algumas horas por dia, todos os dias, sentado no banco da praça mais movimentada de Roosevelt Island - haja guerra ou haja paz.

Tolstói está sempre lendo alguma coisa, as costas formando um ponto de interrogação quase perfeito sobre o livro, como se essa manobra radical da cabeça em direção ao plexo solar tivesse sido aperfeiçoada ao longo de muitos anos de rígida disciplina - uma Nadia Comaneci da cifose. Capote gasto nos dias frios, mangas arregaçadas quando o calor aperta, o figurino todo preto varia o mínimo possível. 

A barba encosta nos botões da camisa, e os cabelos são um vasto tumulto prateado. Lamento que não lhe ocorra adotar um chapéu no inverno ou uma bata branca nos dias mais quentes. Ajudaria a compor o personagem e justificaria o apelido. Se fizesse anotações para compor o grande romance realista sobre o nosso tempo, melhor ainda. Mas meu Tolstói não escreve ou pontifica. Pelo menos em público.

Às vezes, o homem de barba branca deixa o livro de lado e concentra-se no que acontece em volta. Para quem gosta de prestar atenção no comportamento de estranhos, a praça é um cinema com sessões ininterruptas. A qualquer hora do dia, pode-se escolher entre o romance, o drama, a comédia familiar, o filme mudo. 

No verão, pais com crianças pequenas dominam o território, mas todos os tipos humanos estão representados nesse pequeno bioma nova-iorquino: gente moça, gente velha, gente que consegue (ou precisa) dormir na rua, leitores de celular, comedores de sanduíches. Tolstói acumula as funções de observador e observado. Não é do tipo que assusta crianças, mas consegue se destacar em uma cidade em que todas as estranhezas parecem mapeadas e nada chama atenção por mais de 30 segundos.

No inverno, Tolstói não se intimida com a neve. Talvez porque tenha assistido a nevascas épicas em cantos mais gelados do mundo (na Rússia, claro, gosto de imaginar). A praça se esvazia, mas ele não abandona seu posto. Nos primeiros dias de abril, quando as cerejeiras anunciam a chegada da primavera e o chão se cobre de pétalas, tudo volta a ficar colorido, menos ele.

O Tolstói da praça nem desconfia que quando passo por ele penso em guerras napoleônicas, na doença terrível que matou Ivan Ilitch, nos sofrimentos de Anna Karenina e na arte quase perdida de observar estranhos sentados em bancos de praça - no caso dele, lendo e observando estranhos, sem nunca observar o celular.

CLÁUDIA LAITANO

31 DE JULHO DE 2023
INFORME ESPECIAL

Quem conhece, cuida

As árvores de uma das mais tradicionais áreas verdes de Porto Alegre, a Praça Dom Sebastião, no Centro, receberam placas de identificação (foto) com nome, espécie e origem. Chamada de EcoGuia, a iniciativa partiu de alunos do Grupo de Educação Ambiental do Colégio Marista Rosário, que fica bem ao lado, para incentivar o cuidado com a natureza. Além de informações básicas, as placas receberam QR Codes. É só apontar o celular para saber mais. Quem conhece, cuida.

Peruanos na cozinha

Tem novidade gastronômica chegando à Capital, na onda dos sabores do Peru, que vêm conquistando paladares por aqui. É o AYMA Gastronomia, uma parceria entre os chefs peruanos Carlos Paredes e Luis Caballero (foto) e os empresários gaúchos Amanda Floriano, Josiane Rosa e Julio Quadros - à frente de marcas como Isoj Nikkei Drinks e Sole Pizzeria Del Porto, no Cais Embarcadero.

A partir da fusão de culturas, a ideia é promover eventos sociais e corporativos que apostem em alta gastronomia e menus personalizados. O lançamento do serviço será no dia 8, no showroom da loja Ovoo (Rua Dona Laura, 785), no bairro Rio Branco, em Porto Alegre.

JULIANA BUBLITZ

sábado, 29 de julho de 2023


29 DE JULHO DE 2023
MONJA COEN

TRANSMISSÃO

A missão transmitida, passada, transformada, continuada. Receber é transmitir: são palavras usadas no Zen. E não é assim? Para tudo. Recebemos o vírus e transmitimos o vírus. Recebemos os preceitos, fazemos o compromisso de uma vida ética e responsável e transmitimos os preceitos.

Passei a semana toda nos trabalhos misteriosos e secretos da transmissão do Darma ao meu discípulo Jozen, monge de Campina Grande, na Paraíba. Foi em 9 de outubro de 2009 que Jozen recebeu os preceitos laicos e se tornou um discípulo de Buda. Seu nome significa Puro Zen. É professor de Geografia, marido, pai e fundador de um Centro Zen na casa onde reside. Atualmente, está desenvolvendo um projeto de construção de um espaço que venha a se tornar um templo Zen.

Foi ordenado monge em 2011 e tem se dedicado a estudar e propagar os ensinamentos de Buda. De 21 a 27 de julho, passou sete dias e sete noites praticando Zazen, liturgias, orações e copiando textos muito antigos que têm sido passados de geração em geração de forma correta e contínua.

Receber é transmitir. Transmitir é despertar. Nossa proposta de vida Zen é provocar o despertar da mente de sabedoria e compaixão. Perceber e facilitar para que outros percebam como estamos interligados a tudo e a todos: somos a vida da Terra.

Queremos salvar o planeta? Queremos que a Terra esteja saudável e produza alimentos que satisfaçam a necessidade de todas as formas de vida? Cuidamos da integridade das relações humanas entre nós, seres humanos, e entre todas as formas de vida que nos mantêm vivos? Será que respeitamos homens, mulheres, crianças, idosos sem distinção? 

Somos capazes de tratar cada criatura com o cuidado adequado às suas necessidades verdadeiras? Somos capazes de provocar as pessoas a ter maior consciência de sua posição no mundo, de seu papel na manutenção das causas e condições de uma vida plena ao maior número de seres? Será que compreendemos a alegria e prazer de viver em um mundo pacífico, sem medos e sem ameaças? Podemos confiar uns nos outros? Podemos confiar em nós mesmos?

"Afinal, tudo que está sob o Sol está afinado. Mas o Sol está encoberto pela Lua."

As frases acima são de uma música de um grupo inglês de rock chamado Pink Floyd. Refletem um pensamento Zen: estamos todos sempre nas mãos de Buda e interligados na grande harmonia cósmica. Tudo que possa nos acontecer, tudo que está acontecendo, tudo que já passou e tudo que será, está em harmonia. Harmonia de acordo com as causas e condições que produzimos, criamos.

Somos vítimas e vitimadores. Pacifistas e guerreiros. Amamos e odiamos. Somos neutros e frios, militantes e quentes. Somos todas as possibilidades de sentimentos e processos mentais humanos. Os graus variam. Graus de descompasso, ritmo. Graus de harmonia, algumas desarmônicas.

Por exemplo, na música, os blues têm uma nota triste, melancólica. Ficamos assim azulados, sentimentais, sofridos. Ah! Santa Sofrência!

Ainda bem que você existe e nos permite amar, sentir apreensão, ansiedade, tristeza e um incessante recomeçar. Refazer relações e rever a realidade. Compartilhar e agradecer a vida em cada instante. Criar causas e condições capazes de produzir benesses.

Receber é transmitir. Recebam e transmitam a verdade e o caminho. Recebam e transmitam o Bem. Lembrem-se sempre de seus professores e professoras, mestres e mestras, pais, ancestrais, amigos, parentes. Saber agradecer é essencial para uma vida plena.

Transmito o Darma que recebi e tem sido passado de geração a geração numa corrente direta e inquebrantável. Nosso voto, ao receber os ensinamentos, é o compromisso de não permitir que os ensinamentos desapareçam. Que assim seja!

Mãos em prece

MONJA COEN

29 DE JULHO DE 2023
DRAUZIO VARELLA

OS MALES DA SOLIDÃO

Somos animais gregários, porque a formação de grupos foi essencial à sobrevivência dos nossos ancestrais. Que chance teríamos de escapar das feras se andássemos sozinhos pelas savanas da África, quando descemos das árvores? Nossa necessidade de companhia é tanta, que ficamos infelizes ao passar um mísero sábado à noite sozinhos, em casa.

Os benefícios de uma vida em contato com os familiares, cheia de amigos e de relações sociais estão ligados à satisfação no trabalho, à prosperidade financeira, à sensação de bem estar e à realização de sonhos e desejos pessoais.

Nos últimos anos, disciplinas como epidemiologia, neurociência, psicologia e sociologia demonstraram que a existência de conexões sociais sólidas tem valor preditivo em relação à longevidade e à boas condições físicas, cognitivas e mentais. Por outro lado, na ausência dessas conexões ocorre o oposto.

Inquéritos populacionais com participantes saudáveis têm confirmado essas conclusões: quanto mais abrangentes as relações sociais, maior a longevidade. Ao contrário, solidão e isolamento aumentam o número de mortes precoces.

Um dos primeiros estudos longitudinais com grande número de participantes, publicado em 1979, mostrou que a falta de contatos sociais mais do que duplica o risco de morte. Numa revisão de 148 estudos, com pessoas saudáveis acompanhadas por um período médio de 7,5 anos, a existência de conexões sociais sólidas reduziu as taxas de mortalidade em cerca de 50%.

Os autores destacam o fato de que solidão e isolamento social causam aumentos de mortalidade comparáveis aos de fatores comportamentais, como sedentarismo, fumo e álcool. Comparável, também, aos de problemas clínicos: hipertensão arterial, índice de massa corpórea elevado e colesterol alto. Os malefícios são semelhantes aos da poluição ambiental. Segundo eles, solidão e isolamento social são tão perigosos quanto fumar 15 cigarros por dia ou tomar seis doses de bebida alcoólica diariamente.

O isolamento e a solidão estão associados a aumento da morbidade por infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral (AVC). Numa síntese de 16 estudos, o risco de sofrer infarto aumentou 29%, e o de AVC, 32%. A vida solitária aumenta também o número de infartos fatais.

Uma pesquisa realizada entre pacientes com doenças cardiovasculares demonstrou que a solidão aumenta em 57% o número de hospitalizações e em 26% o de consultas ambulatoriais, eventos que aumentam os custos da assistência médica.

O fato de a hipertensão arterial incidir com mais frequência na raça negra - justamente a mais desfavorecida economicamente - e nos adultos mais velhos, explica porque os níveis de pressão são controlados com mais dificuldade nesses grupos. Nos hipertensos solitários, o risco de complicações ultrapassa aquele dos que sofrem de diabetes.

Em mulheres com mais de 70 anos, a solidão aumenta a probabilidade de desenvolver diabetes. A maior dificuldade de controlar os níveis de glicemia de quem vive isolado explica o maior número de complicações: infarto do miocárdio, AVC, retinopatia, neuropatia periférica e insuficiência renal crônica.

Os dados publicados pela National Health Nutritional Examination Survey, conduzida em pessoas com diabetes, revelaram que aqueles com menos de seis amigos próximos apresentam mortalidade mais alta, independentemente da causa de morte.

Nos mais velhos, o isolamento e a solidão guardam relação direta com a velocidade do declínio cognitivo e com o aumento do risco de demência. Um trabalho que acompanhou mulheres e homens na velhice, durante 12 anos, mostrou que as habilidades cognitivas declinam 20% mais depressa nos solitários.

Diversas publicações calcularam que isolamento e solidão duplicam o risco de desenvolver depressão e ansiedade. Nas crianças, esse risco chega a permanecer elevado por até nove anos. A convivência com um círculo maior de amizades reduz em 15% o risco de depressão e ansiedade em quem passou por experiências traumáticas.

Isolamento social é o fator preditivo mais forte para ideações suicidas e tentativas fatais ou não.

Sempre soubemos que famílias unidas, muitos amigos e relações sociais gratificantes contribuem para uma vida plena. Não sabíamos é que o isolamento e a solidão fazem tanto mal à saúde.

DRAUZIO VARELLA

29 DE JULHO DE 2023
J.J. CAMARGO

O QUE A GENEROSIDADE FAZ COM AS PESSOAS

"A verdadeira generosidade é você dar tudo de si e ainda sentir-se como se isso não lhe tivesse custado nada." (Simone de Beauvoir). Há muito se sabe que fazer o bem faz melhor àquele que o fez do que àquele que o recebeu.

O sentir-se bem sendo generoso está na essência do gesto e não no tamanho da doação. Não importa que o doador seja milionário, para quem a doação não tenha uma súper dimensão material. O que importa é o quanto a decisão de doar, o que quer que seja, tenha servido para modificar a vida de alguém.

Os que descobriram o encanto de doar passam a ser movidos pela gratidão do outro e se transformam, geralmente sem perceber, em arautos da doação, porque faz parte da personalidade da generoso, muito mais do que o bem material doado, servir de modelo a quem ainda não descobriu o fascínio de se envolver em uma tarefa solidária que, pela pureza de intenções, desencadeia um efeito cascata que ultrapassa os limites de própria individualidade.

Da minha experiência na Clínica Mayo, chamou-me a atenção que a maioria dos edifícios da instituição tivesse o nome de alguma família doadora. Indo atrás do motivo da doação, encontrei relatos geralmente envolvendo uma experiência médica bem-sucedida em que um familiar tinha sido salvo e o mérito atribuído a excelência do atendimento médico.

Mas na maioria dos casos uma placa ao pé do busto de um casal doador anunciava o gesto como retribuição ao trabalho oferecido e um estímulo para que a obra social se mantivesse.

A nossa Santa Casa, como hospital filantrópico, muitas vezes tem sido destinatária de doações de pessoas ou famílias que se sensibilizaram com o reforço institucional para tratar com dignidade os indigentes na era pré-SUS e depois (1988) para assegurar que os todos os pacientes tivessem acesso à tecnologia moderna que o SUS, com suas restrições econômicas, não conseguiria oferecer.

Famílias e grandes empresas com senso de responsabilidade social têm contribuído, de maneira mais expressiva ao longo dos últimos 40 anos, não apenas para restaurar a estrutura física, como construir unidades novas que qualificaram a instituição como um moderno complexo hospitalar que nunca negligenciou sua missão de misericórdia, expressa pela oferta de idêntica sofisticação tecnológica entre pacientes do SUS ou de convênios, usando o lucro do atendimento privativo para subsidiar o déficit do SUS.

Neste sentido, a inauguração do oitavo hospital do complexo terá importância fundamental na sustentabilidade futura da Santa Casa. A generosa contribuição do casal Alexandre Grendene e Nora Teixeira foi, e continuará sendo, decisiva para a concretização desse projeto, que, mais do que empolgação, exigirá continuidade.

Foi comovente e emocionante observar a reação da Nora quando soube que teria seu nome na linda fachada do hospital. Mas a comemoração durou pouco. Ela só quer saber dos novos projetos, envolvida que está neste círculo virtuoso que toma conta das pessoas bem resolvidas, que descobriram o incomparável prazer de cuidar de alguém e alcançaram a transcendência que envolve a percepção de que nada encanta mais do que dar a um desconhecido uma alegria que sozinho ele nunca conseguiria.

J.J. CAMARGO

29 DE JULHO DE 2023
CARPINEJAR

A almofada do torcedor

Eu tenho saudade dos jogos de futebol de antigamente. Você ia ao estádio como quem se dirigia para uma rodoviária, com sua malinha, com seu kit básico de torcedor. Além da camiseta do seu time no corpo, carregava um radinho de pilha e uma almofada. Os mais velhos não abdicavam da almofada para se sentar na pedra fria.

As arquibancadas, desprovidas de cobertura, tinham degraus de concreto. Com a sucessão de chuvas, ficavam úmidas por um bom tempo. Encharcavam a calça, com infiltração na sua roupa de baixo. Cadeiras eram destinadas à direção, em áreas restritas a conselheiros e ex-presidentes. O equivalente ao camarote de hoje.

Sócio-raiz se deslocava pela cidade com o travesseirinho quadrado e magro de seu clube, estampado com o símbolo e as cores de sua paixão. Ninguém se envergonhava do assento portátil. O material se mostrava surrado de vários campeonatos, com a espuma já fina. Podia-se constatar a fidelidade do sócio pelo estado da almofada. O suvenir costumava ser arrematado no comércio das imediações do estádio por raro impulso de um título.

Sem celulares, o rádio reinava solitário. Entenda que não se usava fone de ouvido. A solidão da escuta surgiu nas últimas décadas. Você brigava com a algazarra da torcida, com o som ambiente, para ouvir o narrador. Alguns levavam aparelhos grandes nos ombros, concentrando-se para entender o que estava sendo dito pela emissora. Nos arcaicos Beira-Rio e Olímpico, ocupavam os melhores lugares aqueles que chegassem primeiro.

Quem permanecesse de pé em lances sem emoção, de troca apática de passes, corria o risco de receber um banho de mijo. Até hoje não foi provada a lenda urbana. Mas, para tirar as pessoas da frente, jogavam-se copos de cerveja quente. Não acredito que alguém mijaria dentro de um copo fora dos laboratórios médicos. Mas que o líquido parecia mijo, parecia.

Em épocas loucas do nosso fanatismo, vaias acabavam representadas com arremesso de pilhas no campo. Gols históricos acabavam comemorados com uma renúncia ainda maior de objetos de estimação: incríveis radinhos lançados para cima, que se despedaçavam no chão, pisoteados pelos pulos da massa.

Não havia pipoca. Não havia bombonière. Não havia pizza ou cachorro-quente gourmet. Você nem abandonava a sua localização no intervalo do primeiro para o segundo tempo. Com a multidão ávida por um ângulo privilegiado da partida, jamais recuperaria o seu local.

Você se valia dos ambulantes para comprar amendoim com casca. Matava a sua ansiedade procurando os grãos, as joias nos aquedutos da semente. Fazia um prodigioso ninho debaixo dos seus pés, um tapete da sua fé.

As pedras do amendoim agiam como um terço improvisado, na reza incansável por uma vitória. Não se passava por dificuldades constrangedoras para quebrar as nozes no Natal, de tanto esmagar amendoim entre os dedos ao longo do ano.

CARPINEJAR

29 DE JULHO DE 2023
PREVIDÊNCIA SOCIAL

Processos sobre revisão da vida toda são suspensos

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu a um pedido do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e determinou a suspensão de todos os processos sobre o tema da revisão da vida toda que tramitam na Justiça. A suspensão valerá até o julgamento do recurso apresentado pela autarquia.

Segundo a assessoria do STF, "a suspensão temporária é para garantir uniformidade e segurança jurídica". A Corte vai decidir no período de 11 a 21 de agosto, no plenário virtual, se confirma ou rejeita a decisão de Moraes.

O tema foi analisado em dezembro do ano passado pelo Supremo. Pelo novo entendimento, aposentados poderão solicitar que toda a vida contributiva seja considerada no cálculo do benefício. Até então, só eram consideradas as contribuições a partir de julho de 1994 - quando o Plano Real foi implementado e ajudou a conter a hiperinflação e a estabilizar a moeda.

O INSS, contudo, alegou em fevereiro não ter condições de revisar os benefícios. No pedido feito ao STF, a autarquia disse que o cumprimento da decisão "extrapola as suas possibilidades técnicas e operacionais" e apontou a necessidade de realizar alterações de sistemas, rotinas e processos com "impacto orçamentário de milhões de reais".

Modulação

"O volume de pessoas que podem eventualmente pleitear a revisão sem a correta delimitação do sentido e do alcance da tese firmada com a necessária integração do julgamento dos embargos de declaração é enorme, pois no período que vai de 26/11/1999 a 12/11/2019 - vinte anos - o INSS concedeu 88.307.929 benefícios, nem todos alcançados pela tese firmada na presente repercussão geral, o que ficará mais claro a partir do julgamento dos embargos de declaração ora interpostos", sustentou a autarquia por meio da Advocacia-Geral da União (AGU). Em resposta, na época, Moraes solicitou o envio de um cronograma de pagamento para averiguar o planejamento da autarquia antes de conceder a suspensão.

O INSS também incluiu no recurso pedido para que a modulação dos efeitos da decisão exclua a possibilidade de revisar benefícios extintos e anular decisões que negaram direito à revisão no passado.


29 DE JULHO DE 2023
FLÁVIO TAVARES

VIOLÊNCIA E VIOLENTOS

A violência domina nosso dia a dia. Já temos temor de sair à rua, mais ainda falando ao celular, até nas urgências. Às noites, tudo piora e o medo se multiplica.

Em Porto Alegre, chegou a haver até um morto a facadas e, logo, esquartejado, cortado em pedaços, como carne em açougue. O roubo de automóveis tem diminuído depois que colocaram câmeras nas principais sinaleiras, mas permanece como ameaça. E ainda "agradecemos" aos ladrões pela "bondade" de nos deixar com vida? Os jornais e a TV noticiam, quase diariamente, mortes e roubos, em especial no bairro Rubem Berta, que tem este nome em homenagem àquele que tornou nossa Varig um modelo mundial de companhia aérea. A própria Varig sofreu a violência da má administração e desapareceu?

A violência da fraude invadiu os negócios e cresceu assustadoramente com os golpes virtuais. Temos de nos cuidar até do telefone celular, pois nos chamam de um suposto banco oferecendo um empréstimo inexistente. Os celulares furtados no país em 2022 equivalem a quase um caso por minuto.

O estelionato transformou-se em parte da vida diária e nos ameaça tal qual o assalto de rua para arrancar a bolsa das mulheres. Os assassinatos estão "em queda", segundo as estatísticas, mas ainda são altos e chegam a 130 por dia no país. Os estupros chegam a oito por hora (acentuo, oito por hora) no país e em 2022 totalizaram 74.951 casos. Em grande parte, as vítimas foram meninas menores de 14 anos.

A violência vem, também, dos próprios magistrados, cuja função é vigiar o cumprimento das leis que nos protegem como cidadãos. Na última quinta-feira, este jornal publicou a lista de desembargadores do Tribunal de Justiça e juízes que percebem mais de R$ 500 mil ao mês. Indago: vindo de juízes, não é isso uma violência e um ultraje à cidadania?

A violência das violências, porém, continua a ser nosso descaso com a preservação do meio ambiente. Os efeitos brutais da crise climática, cuja mostra aparece agora no verão do Hemisfério Norte, são a cicatriz visível do horror que nos ameaça. Mas continuamos insensíveis, poluindo a vida com combustíveis fósseis e carros a gasolina ou diesel, sem maiores iniciativas de veículos elétricos?

Em suma, chego à triste conclusão de que, em verdade, somos todos violentos ao admitir a violência!

FLÁVIO TAVARES

29 DE JULHO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

O PESO DA CREDIBILIDADE

É historicamente alta a confiança depositada na produção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A credibilidade do órgão não foi algo obtido da noite para o dia, mas o resultado da constatação no decorrer de décadas de que os números apurados e divulgados à sociedade têm total aderência à realidade. Foi assim no transcorrer de governos democráticos e autoritários e de diferentes matizes políticos.

Ao longo da semana que passou, instalou-se a controvérsia sobre a indicação do economista Márcio Pochmann para o comando do IBGE, por desejo do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi rememorada a sua passagem à frente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2007 e 2012, quando se envolveu em polêmicas que indicavam uma atuação ideologicamente enviesada, com direcionamento em concursos e relações conflituosas com quadros que não rezavam pela cartilha do governo petista de então.

De pronto lembrou-se o corrido na Argentina mais ou menos na época, quando o país vizinho, sob o casal Kirchner, promoveu uma intervenção no Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), levando a um apagão na produção de dados confiáveis. À época, técnicos denunciaram uma tentativa em especial de maquiar a alta da inflação. O resultado foi que a credibilidade da própria Argentina foi abalada.

Cabe apenas ao governo federal e ao próprio Pochmann acabarem com qualquer desconfiança. Basta que venham a público assegurar que não haverá nenhuma ingerência. Explicar os mecanismos de governança e de controles internos de coleta e tratamento dos dados que impediriam qualquer tentativa nesse sentido. Pochmann, petista histórico e economista desenvolvimentista, contribuiria assegurando que zelará pelo trabalho técnico do IBGE, mantendo-se, a exemplo dos demais presidentes do órgão, como um ilustre desconhecido do grande público.

O IBGE é o principal fornecedor de dados oficiais do país. Entre eles estão PIB, inflação, taxa de desemprego, renda, nível de atividade setorial e censo demográfico, entre vários outros estudos de alta relevância. É pelos dados produzidos pelo instituto que governos, empresas, organizações, imprensa, economistas, institutos de pesquisa e população se apropriam de informações essenciais para se conhecer a situação do país, planejar políticas públicas e tomar decisões. São indicadores que, pela importância que têm, não devem ser alvo de qualquer desconfiança de contaminação política. Seu corpo técnico qualificado, portanto, deve continuar a trabalhar com independência e guiado de acordo com os melhores manuais de boas práticas da área.

Se surgiram temores devido a episódios passados, seria conveniente o governo se apressar em assegurar tratarem-se de receios infundados. Depois, demonstrar na prática, com o passar do tempo. Até porque qualquer ousadia em sentido contrário, especialmente acerca de números econômicos, seria desastrosa e facilmente detectada por outros órgãos e institutos.



29 DE JULHO DE 2023
+ ECONOMIA

Um sonho de escola de R$ 6 milhões

Associação sem fins lucrativos que oferece educação e assistência para bebês, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade na zona sul de Porto Alegre, a Aldeia da Fraternidade concretizou um projeto ambicioso ao completar 60 anos. Com doações de cerca de R$ 6 milhões de empresários gaúchos, vai tirar do papel a Escola dos Sonhos. Os empreendedores propuseram que crianças, professores e demais envolvidos definissem onde sonhavam estudar e trabalhar, o que originou a nova escola comunitária de educação infantil.

Com a Escola dos Sonhos, a projeção é triplicar o número de atendidos na instituição, fazendo com que o atendimento chegue a mais de 350 bebês e crianças em três anos. A equipe atual receberá qualificação e novos profissionais das áreas pedagógicas e de nutrição serão contratados, além de uma equipe de especialistas na área de saúde e assistência para acompanhar o desenvolvimento de cada criança.

Uma edificação já existente foi aproveitada. A ampliação foi baseada em conceitos da neuroarquitetura, que considera o impacto do ambiente físico no comportamento humano, com materiais como concreto aparente, vidro e madeira.

A previsão é começar a obra em dezembro e concluí-la em 2025. Além de investimentos já garantidos com o apoio de empresários gaúchos, a Escola dos Sonhos terá apoio no projeto e construção de parceiros como a construtora Tedesco e o Instituto Jama. O atendimento especializado em saúde e nutrição será montado com apoio do Instituto Moinhos de Vento.

Até associação de bancos já vê corte de 0,5 p.p. no juro

Depois da melhora na perspectiva da nota de crédito do Brasil pela S&P, da deflação no IPCA cheio de junho e no IPCA-15 de julho, e do aumento do rating pela Fitch, não há mais dúvida: na próxima quarta-feira, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) vai abrir o ciclo de baixa no juro básico. A dúvida é sobre o tamanho do primeiro corte.

Muitos economistas seguem apostando em uma poda simbólica de 0,25 ponto percentual, que estaria alinhada à palavra "parcimônia" usada na ata da reunião anterior. Mas até uma associação de bancos - justa ou injustamente, associados a um suposta preferência por taxas mais altas - já aposta em corte de 0,5 ponto percentual. Na sexta-feira, a assessoria econômica da Associação Brasileira de Bancos (ABBC) publicou nota em que oficializa sua convicção de que "há plenas condições para o início da flexibilização monetária, com uma queda na Selic de 0,5 p.p.". Ao justificar a aposta, pondera que "a decisão estaria alinhada ao balanço de riscos favorável, ao consistente processo de desinflação e à queda das expectativas, e ajudaria a reduzir o grau de aperto monetário".

Everton Gonçalves, superintendente da área, lembra que a taxa real de juros ex-ante, calculada com base na taxa prefixada do swap de 360 dias e nas expectativas de inflação dos próximos 12 meses, tem oscilado em torno de 7% ao ano, muito acima dos 4,5%, considerada a taxa neutra - que não provoca contração nem estimula crescimento - pelo Banco Central.

Além de menor pressão inflacionária e redução das incertezas no âmbito fiscal, Gonçalves aponta a contribuição da "tramitação favorável" do marco fiscal no Congresso e a aprovação da reforma tributária na Câmara. E afirma que a decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN) de manter a meta de inflação para os próximos anos em 3% ajudou na chamada "reancoragem das expectativas" desejada pelo Copom.

- A percepção de um cenário fiscal mais benigno foi compartilhada pela recente elevação da classificação do risco soberano pela agência Fitch - destaca Gonçalves.

MARTA SFREDO


29 DE JULHO DE 2023
CHAMOU ATENÇÃO

Fazendas de Jango em leilão

Duas fazendas que pertenceram ao ex-presidente da República João Goulart (1919-1976) foram colocadas em leilão na sexta-feira. A primeira etapa da concorrência, entretanto, encerrou sem interessados.

De acordo com a empresa encarregada pelo processo, Akimoto Leilões, o segundo pregão ocorrerá em 11 de agosto, às 15h. As propriedades estão localizadas em Itacurubi, na região central do RS, e em Itaqui, na Fronteira Oeste. Juntas, estão avaliadas em mais de R$ 250 milhões, segundo a Akimoto Leilões. As informações são do portal g1.

João Goulart, que era natural de São Borja, também na Fronteira Oeste, foi o 24º presidente do Brasil, cumprindo mandato de 1961 a 1964, até ser deposto por um golpe militar. Conforme informado no site da leiloeira, a decisão de colocar as fazendas à venda partiu da família, e o preço definido está abaixo do valor de mercado.

Uma das propriedades em questão é a Fazenda Cinamomo, localizada em Itaqui, com área de 2,7 mil hectares. Segundo a apresentação de Zuleika Matsumura Akimoto, leiloeira responsável pelos lances, mais de 90% dessa terra é apropriada para atividades agrícolas. O valor inicial do leilão foi estipulado em R$ 173.900.787.

A segunda propriedade, em Itacurubi, é chamada Fazenda Presidente João Goulart, com lance inicial de R$ 80.716.195. De acordo com a casa leiloeira, essa propriedade possui 2.124 hectares, dos quais 55% são destinados à agricultura e os outros 45% são voltados à pecuária.

Presidente

João Belchior Marques Goulart, conhecido como Jango, nasceu em São Borja, no ano de 1919. Ele ocupou a posição de vice-presidente durante os governos de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, entre os anos de 1956 e 1961. Após a renúncia de Jânio, o gaúcho assumiu a Presidência por meio da Campanha da Legalidade, que foi liderada pelo seu cunhado e então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.

Em 2 de abril de 1964, João Goulart foi deposto do cargo de presidente do Brasil. Morreu em 1976, em uma de suas fazendas na Argentina, e a causa da morte foi anunciada como ataque cardíaco.

Em 2013, a pedido da Comissão Nacional da Verdade, os restos mortais de Jango passaram por perícia, que não conseguiu determinar conclusivamente a causa da morte.

CHAMOU ATENÇÃO

29 DE JULHO DE 2023
MARCELO RECH

Não é C3E

Quando a estatal de telecomunicações gaúcha, a nada saudosa CRT, foi privatizada, teve fim uma era em que se usava pistolão para conseguir telefone, que, de tão valioso, era declarado no Imposto de Renda. Apesar da privatização, as mazelas da CRT não sumiram da noite para o dia. Deficiências históricas se acumulavam e inundavam de queixas a seção O Rio Grande Reclama, de Zero Hora. Eram tão frequentes as respostas assinadas na seção pela gerente de Comunicação da CRT privatizada, Rita Campos Daudt, que eu, então chefe de redação de ZH, brincava que a qualquer hora ela poderia pedir vínculo empregatício com o jornal.

Passaram-se os anos, a empresa mudou de controle algumas vezes e, apesar de muitos problemas com os usuários, seus sucedâneos puseram fim aos pesadelos da CRT. A privatização das telecomunicações no Brasil, onde hoje há mais de um celular por habitante, evidentemente é um sucesso.

Os detratores das privatizações, porém, ganharam agora um fôlego com a ineficiência da compradora da CEEE-D, a Equatorial, em solucionar a queda de energia que atormenta usuários mais de duas semanas depois de um ciclone.

A Equatorial ofereceu uma batelada de justificativas para contestar a demora e para a dificuldade de lidar com a demanda por comunicação com os usuários. É uma situação rara a de se conhecer alguém satisfeito com a performance da empresa nesta área, sobretudo quando ela seria mais urgente e necessária. Em comunicação, o que importa é a percepção, e, no episódio, a empresa passa a imagem de lenta e negligente, exatamente o que de pior se associa a estatais.

De qualquer forma, é cedo para julgamentos definitivos. A empresa pode se recuperar da crise de imagem das últimas semanas se entender como funciona o Rio Grande do Sul e corresponder ao grau de qualidade e atenção exigido por seus usuários. Mas não tenho dúvida de que se deve louvar a privatização da CEEE, uma estatal quebrada, que não cumpria sequer a obrigação mínima de recolher o ICMS aos cofres públicos. Bastaria a volta do pagamento de impostos para justificar a privatização, embora seja preciso ir bem além.

Fora do Estado, a CEEE é chamada de C3E, mas agora a Equatorial já sabe também que o Rio Grande do Sul tem granizo, geada, seca, enchentes, vendaval, chuvarada e ciclones como parte de sua natureza imutável. Então que se prepare à altura para os próximos temporais. E, mesmo que a conta venha a ser mais salgada por anos à frente, é preciso um dia enterrar a fiação nas cidades. Em boa parte do mundo onde a fiação é subterrânea, se desconhece falta de energia durante tempestades. Está na hora, portanto, de começar a apresentar essa experiência civilizatória aos gaúchos, como um dia o foi a troca de lampiões pela luz elétrica.

MARCELO RECH

sexta-feira, 28 de julho de 2023


28 DE JULHO DE 2023
CELSO LOUREIRO CHAVES

Musicar poemas

Há pouco, numa aula de música, ouvimos Hildegard von Bingen, Santa Hildegarda, e lemos os seus textos científicos, inclusive a descrição de um orgasmo feminino que termina dizendo, há 800 anos: "e então todas partes que estiveram prontas para se abrir no tempo da menstruação se fecham, do mesmo modo que a força de um homem pode fechar algo em seu punho".

Uma coisa puxa a outra e foi inevitável lembrar, em Santa Hildegarda, a poeta Angélica Freitas e o seu Um Útero É do Tamanho de um Punho. E, já que estávamos numa aula de música, aproveitamos para ler - pulando do medieval para o contemporâneo - aquele poema da Angélica que fala de um violinista segurando um Stradivarius no meio do "grande desastre aéreo de ontem".

Mais tarde, já fora da aula, fui folhear o meu livro Memórias do Pierrô Lunar e parei numa crônica, Canções e Poetas, que fala da fidelidade de dois compositores porto-alegrenses, Bruno Kiefer e Armando Albuquerque, aos seus poetas de escolha. Pois ao comporem canções, um voltou sempre a Carlos Nejar e, o outro, a Augusto Meyer. Compositores de música e seus compositores de palavras.

Minha crônica do livro ficou pensando: "enquanto a Estética do Frio segue em processo e enquanto as canções do passado estão dormentes, devem existir outros poetas à espera de músicos. E devem existir outros músicos à espera de poetas. É um exercício de curiosidade, então, prever o que estes encontros não realizados produzirão, se algum dia a música do presente voltar a encontrar a palavra do presente".

O texto é de 2006 e eu não podia prever o que aconteceu, de lá para cá: uma nova fidelidade de música e poesia, com a música de Vitor Ramil potencializando os versos de Angélica Freitas, as palavras oxigenando os sons. O meu "exercício de curiosidade" de quase 20 anos foi respondido pelo álbum Avenida Angélica e pela parceria Ramil/Freitas, trazendo para hoje as parcerias tão fascinantes de Kiefer e Nejar, Albuquerque e Meyer.

As canções de Vitor Ramil e Angélica Freitas já são outra coisa, mas pertencem à mesma tradição, a de musicar poemas, dando vontade de ouvir mais uma vez as meditações de Armando Albuquerque, lembrando também o centenário de Bruno Kiefer, lado a lado com o violinista que se despenca em Angélica e Vitor. Numa tarde de estudos e coincidências, tudo fez sentido e minha curiosidade de 2006 foi respondida, em música e versos. Pois "eu penso em Béla Bartók, eu penso em Rita Lee"...

CELSO LOUREIRO CHAVES

28 DE JULHO DE 2023
CARPINEJAR

Cabine telefônica

Quando entro num banheiro de aeroporto ou de um shopping, eu me assusto com um hábito recente da pós-modernidade: homens ao meu lado no mictório papeando ao celular. Já entram conversando, como se fosse a sala de sua casa. Não param nem no instante mais sagrado de paz.

A vida virtual é tão incessante que não respeita mais o relógio biológico.

Julgo um desrespeito com quem estão falando. O interlocutor não tem como descobrir o quanto se encontra refém de uma privacidade indesejada e desagradável. Pode cogitar a hipótese pelo eco do ambiente. Mas sem a descarga da privada, não contará com a prova cabal da indiscrição. Se soubesse por onde anda o outro, desligaria a chamada imediatamente e daria uma lição de bons modos.

Não é o momento de completar negócios ou de atender a um familiar. Não há urgência que não possa esperar alguns míseros minutos. Só que não queremos perder tempo. Confundimos a importância de viver com o fato de nos ver sempre ocupados, resolvendo dilemas e conflitos.

Por uma questão de sanidade, necessitamos suspender essa mania. As baias são as novas cabines telefônicas. Logo mais serão ilhas de DJs com usuários deslizando freneticamente os dedos nos stories. Não existirá mais o recato.

Não vejo mais paradas e intervalos da existência virtual. Todo lugar é lugar de navegar pelas redes sociais. O Wi-Fi dos sanitários públicos deveria ser cortado. É uma indecência trocar confissões naquela situação.

Não sei o motivo de tal desespero, tal ansiedade, tal compulsão verbal. É uma infantilização da nossa natureza fisiológica, é retornar ao penico da infância, é voltar a fazer suas necessidades com plateia, tendo papai e mamãe por perto, ajudando e motivando.

Talvez seja um medo assombroso da solidão. Não queremos ficar sozinhos nem no toalete. Então, contatamos um afeto para nos acompanhar por ligação, para nos entreter, para nos acudir da claustrofobia do silêncio.

Era muito melhor e mais civilizado quando as pessoas levavam revistas e jornais ao banheiro. Pelo menos, exerciam um retiro da incomunicabilidade, um isolamento fundamental aos pensamentos. Não colocavam terceiros no meio dos seus constrangimentos. Com os olhos vidrados no celular, estamos cada vez mais curvados em direção ao chão, regredindo à postura dos nossos antepassados primatas.

Andamos na rua digitando, almoçamos e jantamos digitando, passeamos digitando, dirigimos digitando, desprovidos de freios off-line. Não olhamos para cima, não olhamos para o céu azul, não olhamos para a lua. Miramos, inadvertidamente, a nossa cova.

Até no banheiro nos mostramos agora viciados, numa atividade anti-higiênica. Não duvido de que os falantes nos banheiros lavem as mãos na saída, mas se esqueçam de limpar a tela do aparelho.

Na hora de tirar uma foto para alguém, pense nisso. As baias são as novas cabines telefônicas. Logo mais serão ilhas de DJs com usuários deslizando freneticamente os dedos nos stories

CARPINEJAR

28 DE JULHO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

FLEXIBILIZAÇÃO JUSTIFICÁVEL

A Secretaria do Tesouro Nacional, vinculada ao Ministério da Fazenda, anunciou na quarta-feira uma série de propostas de mudanças nas regras para os Estados em Regime de Recuperação Fiscal (RRF). As alterações ainda serão analisadas pelo Congresso, onde há sempre nova margem de negociação. Na prática, algumas normas importantes serão flexibilizadas. Ou seja, devem ser menos duras paras as unidades da federação que estão ou pretendem ingressar no RRF. O programa é um mecanismo para amparar Estados com desequilíbrio crônico nas contas por meio de uma suspensão temporária do pagamento da dívida com a União, depois retomado de forma gradativa, em troca de ajuste nas finanças.

É razoável tornar as exigências aos Estados menos duras. Afinal, houve uma perda abrupta de arrecadação pela decisão de afogadilho tomada por governo federal e Congresso, a poucos meses das eleições do ano passado, de redução das alíquotas de ICMS sobre combustíveis, energia, telecomunicações e transporte público. Trata-se da principal fonte de receita tributária das gestões estaduais. Rio Grande do Sul, Goiás e Rio de Janeiro, que estão no RFF, acabaram com o planejamento para cumprir as obrigações bastante comprometido. A compensação acordada entre União e governos estaduais ficou muito distante de recompor o prejuízo e, além disso, será diluída no tempo. Tornou-se justificável, portanto, rever alguns termos.

Entre as mudanças apresentadas pelo Ministério da Fazenda está a ampliação do prazo de permanência no regime, que passaria de nove para 12 anos. O governo gaúcho pleiteava 15, mas considera a proposta um avanço. Permite algum alívio e torna não tão desafiador honrar os compromissos com a União sem que isso signifique sacrifícios adicionais em áreas essenciais para o atendimento da população, como saúde, segurança e educação. No caso do Rio Grande do Sul, voltar a atrasar os salários do funcionalismo seria um retrocesso e deve merecer todos os esforços para não ser reprisado.

Outras mudanças propostas pela Fazenda incluem a redução de penalidades em caso de descumprimento de regras, possibilidade de aumento real de despesas se os governos cumprirem metas fiscais do exercício anterior e aumento no limite para operação de crédito para reestruturação de dívidas. O Piratini também busca que o indexador do estoque da dívida deixe de ser a Selic.

Ainda se aguarda o texto detalhado do projeto de lei que o governo federal vai endereçar ao Congresso. O abrandamento é fruto de uma negociação de dois meses entra União e Estados interessados. Deve-se reconhecer que é o resultado da compreensão federal e do relacionamento institucional maduro entre entes federados. Esse é o aspecto a ser saudado.

Só não se pode esquecer que, nas negociações no parlamento, as modificações, ao sabor de pressões, também podem ser para o mal. É preciso evitar o risco de que uma repactuação motivada por razões procedentes abra a porteira para ajustes fiscais dos Estados mais frouxos e condescendentes com gastos adicionais. Caso contrário, o próprio RRF - um alívio em troca de disciplina que deve se transformar em sustentabilidade financeira ao fim do processo - pode perder o seu sentido original. O pacote anunciado pela Fazenda também inclui medidas adicionais que facilitam o acesso ao crédito a outros Estados e municípios. Sempre é prudente lembrar ação semelhante da União, há cerca de 10 anos, que também incentivou financiamentos a prefeituras sem a melhor saúde financeira. A bondade produziu gastanças, calotes e crises.


28 DE JULHO DE 2023
POLÍTICA +

Aerolíneas amplia oferta de assentos

Primeiro resultado da viagem do governador Eduardo Leite à Argentina, a Aerolíneas prometeu ampliar a oferta de assentos entre Buenos Aires e Porto Alegre. Hoje, a Aerolíneas Argentinas é a única companhia aérea a oferecer voos diretos entre Porto Alegre e Buenos Aires.

No encontro com Leite, a direção da empresa anunciou a ampliação da oferta de assentos em 35% (serão 2 mil a mais por mês). Pelo menos por enquanto, não haverá ampliação do número de voos. A empresa planeja usar aviões maiores para atender à demanda.

Jean Wyllys apaga tuíte

Cumprindo decisão da Justiça, o ex-deputado Jean Wyllys apagou o tuíte homofóbico postado quando o governador Eduardo Leite disse que manteria as escolas cívico-militares. Na publicação, o ex-deputado federal escreveu, citando Leite, que "gays com homofobia internalizada em geral desenvolvem libido e fetiches em relação ao autoritarismo e aos uniformes".

Os moradores do Arquipélago, em Porto Alegre, têm uma nova opção de alimentação gratuita. Isso porque a prefeitura inaugurou ontem o sexto restaurante popular da cidade, na Ilha da Pintada.

A nova unidade do projeto Prato Alegre vai servir 200 refeições por dia com uma novidade em relação aos outros estabelecimentos que atendem à população no município. Serão 50 almoços diários no local e 150 distribuídos em outras três ilhas: dos Marinheiros, do Pavão e das Flores. Com a medida, a prefeitura promete abranger uma região que sofre com a vulnerabilidade social.

O prefeito Sebastião Melo esteve na abertura para fazer a última vistoria simbólica antes da liberação para funcionamento e também almoçou no local (foto). Na ocasião, Melo afirmou que há planos para abertura da sétima unidade na Capital, mas não fez previsões de quando isso pode ocorrer. Além dele, acompanharam o ato o titular da pasta de Desenvolvimento Social, Léo Voigt, e outras autoridades.

O atendimento à população começa hoje e a entrega de marmitas nas outras três ilhas se inicia na próxima segunda-feira, dia 31.

Para receber o atendimento é preciso estar inscrito no Cadastro Único (CadÚnico). Quem tem direito poderá fazer a inscrição na unidade, garante a prefeitura.

Colaborou Alberi Neto

ROSANE DE OLIVEIRA

28 DE JULHO DE 2023
DANIEL SCOLA

Vacinas na Venezuela

Uma ditadura é incapaz de inúmeras realizações, inclusive a de prover vacinas para a população. Na América Latina, a Venezuela se encaixa exatamente neste perfil. O chavismo predomina no país desde 1999, quando o militar Hugo Chávez chegou ao poder, e suas ideias perduram até hoje graças aos seus adoradores, como o atual presidente, Nicolás Maduro. A ditadura falha também num aspecto básico: vacinar crianças. 

Mães desesperadas vagam de posto de saúde em posto de saúde em busca de uma dose para o filho. Um laudo do Unicef, o órgão da ONU responsável pela infância, divulgado recentemente, mostrou que a Venezuela possui o mais baixo índice vacinal das Américas. Apenas 27 % das crianças com menos de um ano de idade receberam alguma vacina. Não surpreende o fato de o sarampo, doença que havia sido erradicada, ter voltado a fazer vítimas.

Entre 2017 e 2020, o Brasil acolheu mais de 600 mil venezuelanos, na maioria dos casos, pessoas que atravessaram a fronteira seca entre os dois países - são mais de 2 mil quilômetros de extensão. O ponto central da caminhada é a cidade de Pacaraima, em Roraima.

A diáspora venezuelana é compreensível. Ao contrário do que sustenta o regime, as pessoas não fogem do país por amarem os Estados Unidos. Elas só querem o básico: comer, trabalhar, desfrutar de liberdade, não viver sob censura, não serem tiradas de dentro de casa no meio da madrugada sem saber o que está acontecendo e, claro, ir ao posto de saúde para vacinar o filho. Em resumo, não ser mandado ou desmandado de acordo com o interesse do governo. O descontrole da vacina em crianças rompe qualquer limite do razoável, até para os padrões de uma ditadura.

O drama da falta de vacina cria uma outra confusão. O ministro da Saúde, Carlos Alvarado, diz uma coisa e a população não sabe se pode acreditar no que ele diz. Muitas vezes, os dados oficiais acabam sendo desmentidos meses depois por relatórios de observadores internacionais. O inconfiável poder venezuelano castiga tanto a população e o sofrimento de crianças é mais uma das consequências da tirania.

DANIEL SCOLA