sábado, 19 de maio de 2018

 
  19 DE MAIO DE 2018
LYA LUFT

Nossos trágicos limites


Com alguma frequência, pedem-me que fale ou escreva sobre famílias em transformação. Muita dor, angústia, medo e confusão nascem com essa ideia e essa realidade, pois até mudanças boas trazem inseguranças. Nem todas são as da borboleta emergindo, bela e livre, do casulo de alguma opressão: algumas são explosões de vulcão e borrifos de lava derretida que nos destroem ou marcam para sempre.

Está na moda falar em "transformação, mudança", com tom de orgulho - como se mudar fosse sempre positivo. No olho do furacão, não há muito tempo para raciocinar, e qualquer coisa, qualquer conceito, ainda que fake (estamos falando em modismos), nos dá algum conforto. Aliás, vicejam receitas: os "ter de" e "faça assim", mostrando nossa servidão a vários senhores e modelos.

A "nova família" sendo uma realidade em tantos casos, o sensato é assimilar: família já não é necessariamente a de pai, mãe, filhos, avós, tios e todo o cortejo, mas pode incluir a namorada do pai, o namorado da mãe, meios-irmãos que vêm junto com os novos relacionamentos - sem falar em famílias com duas mães e dois pais. "Tudo o que é humano me diz respeito", dizia o dramaturgo romano Terêncio, e tinha razão. Sobretudo quando se trata de sentimentos.

Vivemos tempos difíceis e vertiginosos, crianças e jovenzinhos, os mais vulneráveis, debatendo-se numa sociedade agitada, superinovadora, cheia de seduções, às vezes violenta, e preconceituosa. (Vejamos o detestável "politicamente correto", que quer excluir todos os que pensam diferente. Onde a independência, a liberdade de pensar e ser?)

Recentemente, assisti a um documentário sobre um tema tabu e terrível: suicídio de adolescentes, realidade amarga para emergências e hospitais, profundamente trágica para as famílias. Por que se matariam os jovenzinhos? Nem sempre, ou até raramente, por uma tragédia pessoal. Muitas vezes, algo mais amplo, mais vago e não menos pungente: solidão, falta de limites sentida como desinteresse, sem regras que signifiquem aconchego e abrigo, não importa se com pai e mãe, dois pais, duas mães, ou alguém solteiro. A diferença não está no gênero, mas na qualidade e quantidade de afeto, de colo, de escuta, de exemplo e serenidade, de firmeza.

Não é simples orientar os filhos: são incontáveis as possibilidades de vida e até profissão que se abrem para eles. Mas, atenção: a velha frase "quem ama cuida" é eterna. Não oprimir, não criticar demais, nem se neurotizar, mas estar presente, ser interessado, num ambiente de alegria e amor, respeito e ordem. Para crianças e adolescentes, o mundo ainda é informe: nós, adultos, temos de lhes dar algum sentido, vivendo, estimulando, com carinho apesar das naturais discordâncias ou brigas.

Voltando ao terrível assunto: raramente há culpados diretos quando um adolescente se mata. A dura verdade é que, se temos filhos, somos responsáveis; o trágico é que existem limites. Somos todos uns pobres seres humanos querendo fazer o melhor. Nem sempre podemos. Nem tudo dos nossos filhos podemos prever, conhecer ou entender. Como escreveu meu poeta preferido, Rilke, "a alma do outro é uma floresta escura": isso inclui todos aqueles que amamos.

LYA LUFT


19 DE MAIO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

O que faz as coisas darem certo

Duas pessoas. Ambas têm a mesma escolaridade. A mesma origem social. As mesmas oportunidades. Por que a vida é generosa com uma e fecha a cara para a outra? O destino e a sorte têm pouco a ver com isso.

O que tem a ver é o nosso comportamento. Coisas simples nas quais não prestamos atenção alguma. Coluna assumidamente autoajuda, aproveite a promoção.

Vou me demorar no que me parece mais importante: a forma com que cada um se comunica. A maioria dá o seu recado muito mal. Não estou me referindo apenas ao uso correto do português. A pessoa pode ser um acadêmico e, mesmo assim, ser um desastre ao transmitir o que pensa, o que deseja e quem é. Tampouco estou falando de sedução, xaveco. 

Estou falando de convocação para reuniões, convite para eventos, e-mails profissionais, bilhete para funcionários, mensagens de WhatsApp, postagens no perfil do Face, e, claro, as conversas, todas elas: presenciais, telefônicas, gravação de áudios. A gente simplesmente reluta em deixar as coisas esclarecidas, não dá a informação completa, não contextualiza. É tudo racionado, fragmentado, e a culpa nem é dos atuais vícios tecnológicos: ser preguiçoso na comunicação vem da pré-história. Sempre foi assim. As pessoas acreditam que as outras são adivinhas.

"Olá, desculpe o atraso da resposta, fim do ano desorganiza a gente, mas vamos em frente, queremos muito fechar um bate-papo com você. Pode ser dia 25 de maio?"

Exemplo que extraí da minha caixa de e-mails ontem, assinado por uma desconhecida. Fui checar na minha lista de excluídos se havia algum outro e-mail dela, pra tentar descobrir do que se tratava. Havia. De novembro, quando ela fez um convite em nome de uma empresa. Ressurgiu agora como se tivesse pedido licença para ir ao banheiro e voltado em 10 minutos. Não, não posso dia 25, obrigada, fica pra próxima.

Fazemos isso o tempo todo: não nos apresentamos direito, não retornamos contatos, não damos coordenadas, não cumprimos o que prometemos, não deixamos lembretes, não confirmamos presença, não explicamos nossos motivos, não avisamos cancelamentos, não falamos toda a verdade, não tiramos as dúvidas, não perguntamos, não respondemos. Parece tudo tão desnecessário. Aí o universo não coopera, e a gente não entende por quê.

Além de se comunicar bem, há outros três grandes facilitadores na vida, coisas que interferem no modo como as pessoas nos analisam e que garantem nossa credibilidade: ser pontual, ser responsável e ser autêntico - esta última, das coisas mais cativantes, pois rara. Se o Papa Francisco não é presunçoso, por que raios você seria?

É quase inacreditável: as coisas dão certo por fatores que estão totalmente ao nosso alcance.

Que tal ter aulas com uma das maiores escritoras do país? Cintia Moscovich começa na próxima segunda-feira uma nova turma da sua Oficina de Subtexto e ainda há vaga. Informações: oficinadosubtexto@gmail.com ou fone: 3346-6340.

MARTHA MEDEIROS

19 DE MAIO DE 2018

CARPINEJAR

Amar é também ser um fantasma


Gentileza no amor é também não chamar atenção.

Você pode provar que ama trazendo café na cama ou acordando a sua esposa com um ataque de beijos. Mas a maior demonstração é permitir que a sua companhia durma no final de semana. Ter consciência de que ela só pode esticar os horários no sábado e no domingo, quando não é obrigada a bater o cartão e despertar cedo para o trabalho. Preservar o sono da mulher lhe trará recompensas da cumplicidade e do bom humor. Não incomodar é o primeiro passo para o altar.

Se não sabe fazer massagem, pelo menos deixe a mulher relaxar sozinha nas cobertas e o tempo amansar as suas costas.

Relacionamentos terminam justamente porque não há respeito ao descanso sagrado. Parece bobagem, mas não poder dormir quando se quer cria uma antipatia fatal. Sempre haverá no par amoroso o que acorda cedo nas folgas e o que acorda tarde. Impor o seu ritmo e realizar bagunça para aproveitar o dia cedo como casal vai gerando a inimizade dos travesseiros.

Casamento é aprender a ser fantasma de manhã: andar na ponta dos pés para não acordar o outro e pegar as roupas sem fazer barulho.

Estou virando craque em sumir. Educação é não aparecer. Não uso a lanterna do celular, organizo as mudas dos trajes na cadeira e encontro um jeito de cofre para driblar a ferrugem das dobradiças da porta. Qualquer baque ou barulho, ela acordará. Seu sono é leve. Empreendo uma espécie de missão secreta e uso o banheiro da visita para evitar o alarme da descarga.

Eu me treinei para estar presente quando a esposa está de olhos abertos e a evaporar quando está de olhos fechados. No amor, para não enjoar, é fundamental experimentar todos os estados da vigília: sólida, líquida e gasosa.

Porque é emocionante ser procurado pela casa assim que ela acorda. Eu me sinto um morto ressuscitado. Ela grita o meu nome pelos corredores. Como se eu tivesse fugido da relação. Passo a ser caçado pelos aposentos. Nem respondo de imediato para aumentar o suspense. Quando ela me acha, vejo a sua gratidão no abraço apertado de pijama e no seu beijo absolutamente tranquilo.

E o mais prazeroso, além de sua disposição alegre, é não precisar arrumar a cama. O último que acorda é o que sempre deve ajeitar o quarto.

CARPINEJAR


19 DE MAIO DE 2018
PIANGERS
Emoções


Eu estava sentado ao lado da minha filha de 11 anos na sala do cinema pra assistir à estreia de Divertidamente, aquele filme da Pixar que se passa dentro de uma menina de 11 anos, morena de olhos grandes, igualzinha à minha filha. No filme, a menina passa pelo furacão que é a pré-adolescência: tristeza por ter mudado de cidade, raiva dos pais, medo do ridículo, nojo da casa nova. As emoções que governam essa mesa de comando dentro do nosso corpo. 

Mais a alegria, que passa o filme todo tentando salvar memórias boas da menina. Minha filha gostou do filme, mas posso garantir que teria gostado muito mais se não tivesse que passar a sessão inteira me pedindo para parar de chorar. Pai, por que você está chorando tanto com esse filme?, ela me perguntava. Não sei!, eu respondia. Mas é claro que eu sabia.

Eu estava chorando porque estava vendo na tela minha filha com tristezas diversas, raivas secretas, medo do mundo. Eu estava vendo minha filha como um ser humano, não mais como aquela menininha que a gente cuidou até então. A gente cuida do nosso filho por um tempo e por um tempo ele é uma mistura do pai e da mãe, alguma coisa de avó. Mas chega uma hora em que vai aparecendo outra coisa. Vai aparecendo ele mesmo. Aquele ali é nosso filho virando gente. Nosso filho virando gente grande. E dá medo porque eu conheço um monte de crianças legais, mas gente grande legal conheço só uma dúzia.

Porque gente grande tem todos esses sentimentos escondidos. A gente aprendeu a ser fingido: guardar raiva, nojo, tristeza e medo. Expressar alegria apenas de vez em quando. Que se não descobrem que a gente está feliz demais. E isso pode ser usado contra a gente. E ser vulnerável é ser fraco. Eu sou forte. Eu não sinto nada.

Como a gente quer que nossos filhos se expressem com clareza se a gente mesmo não se expressa? Se a gente mesmo não sabe o que sente? Ao longo da vida somos levados a esconder os nossos sentimentos, e de tanto esconder vamos esquecendo o que sentimos. Isso é raiva ou frustração? Isso é impaciência ou infelicidade? Isso é euforia ou alegria? Isso é amor por outra pessoa ou só por mim mesmo?

Acho que é por isso que eu chorava no escuro do cinema. Porque via minha filha crescendo, aquela menininha que expressa todos os sentimentos, meio sem filtro, logo vai estar guardando as emoções, misturando os sentimentos, confundindo tudo. Como o pai, vai precisar de muita terapia. E de alguns filmes da Pixar, pra chorar escondida no cinema.

PIANGERS

19 DE MAIO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

A TIRANIA DAS MÉTRICAS


Houve um tempo em que gente "de humanas", como eu, poderia passar a vida inteira sem jamais ser cobrada por metas e métricas. Doces tempos. De alguns anos para cá, não há área a salvo da cobrança de desempenho baseada em números e estatísticas.

A ideia, em si, não é ruim. Ser capaz de coletar grandes quantidades de dados e analisá-los em profundidade é um dos grandes avanços proporcionados pela tecnologia. O problema é que números nem sempre dão conta de toda a história - e lidos de forma apressada podem, inclusive, distorcer a realidade e piorar a qualidade de determinados serviços. Esse é o ponto de partida do livro The Tyranny of Metrics ("a tirania das métricas", em tradução livre), do historiador Jerry Z. Muller, lançado neste ano nos EUA.

E por que um historiador resolveu escrever sobre métricas? Porque, como muitos de nós, humanos inseridos no mercado de trabalho em 2018, ele não aguentava mais ouvir falar delas. O autor chefiava um departamento de uma universidade particular americana quando começou a ser abduzido de suas funções principais (dar aulas, pesquisar, orientar outros professores...) por estatísticas e planilhas de dados - muitos deles tão relevantes quanto saber o número de vezes que a letra C aparece no título de filmes que ganharam o Oscar. Toda a experiência adquirida pelo professor em anos de chefia de departamento subitamente importava menos do que aquilo que os gráficos apontavam - enquanto as pessoas contratadas para interpretá-los, às vezes com pouco ou nenhum conhecimento sobre a área que estavam quantificando, eram encarregadas de tomar as decisões mais importantes.

Quando começou a pesquisar mais sobre o assunto, aquilo que parecia um problema pessoal acabou se revelando uma espécie de neurose contemporânea, presente em quase todos os campos profissionais. Na introdução do livro, o autor usa como exemplo da atual "saliência das métricas" uma das subtramas da cultuada série The Wire (2002-2008), que mostra comandantes de polícia obcecados por estatísticas positivas (para apresentar aos seus chefes) e policiais inventando gambiarras para aumentar os índices de crimes resolvidos e diminuir o de vítimas. Já na série médica britânica Bodies (2004-2006), são os médicos que se recusam a atender pacientes em estado crítico para não afetar sua taxa de eficiência.

Muller insiste que não é contra as métricas, mas sim a favor do bom senso. Há coisas que podem e devem ser medidas, algumas que não vale a pena medir e outras que, quando medidas, podem produzir conhecimento distorcido, induzindo a deciões que parecem lógicas para quem não leva em conta todos os aspectos envolvidos.

O que o autor defende é que, no mundo dos gráficos e das planilhas de Excel, não se desvalorize a autonomia profissional. As métricas são ferramentas úteis para professores, médicos, policiais, jornalistas, mas podem virar armas letais nas mãos de quem acredita que os números dispensam o uso da inteligência.

CLÁUDIA LAITANO

19 DE MAIO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

ANGÚSTIA


Ela chegou sorrateira, quase imperceptível, no fundo da alma. Até fiquei em dúvida se estaria mesmo presente.

Tudo bem naquele fim de tarde, nenhum problema familiar, financeiro ou ligado ao trabalho me importunava, nenhum doente passava mal. Na frente do computador, eu escrevia um artigo, atividade para a qual tenho pouco tempo e que me dá muito prazer.

Quando percebi, estava melancólico, com os olhos fixos na tela, perdido em pensamentos fragmentados alheios ao texto.

Fui até a janela. O centro de São Paulo refletia a luz alaranjada que o pôr do sol projetava na fachada dos prédios. A silhueta da Serra da Cantareira nos confins da zona norte e os jacarandás da calçada desfolhados pela seca compunham a imobilidade solitária e desesperançada dos quadros de Hopper.

Procurei reagir. Tentei pôr ordem nas revistas científicas que empilho na mesa à espera de tempo para ler, mas me aborreci e voltei à janela.

Pensei em ir para a rua, tomar um café, um copo de cerveja, ligar a TV, assistir a um filme, telefonar para um amigo ou alguém da família, mas faltou ânimo. Ouvir música, nem pensar. Naquele estado, samba do Zeca Pagodinho virava marcha fúnebre. A tristeza paralisa, é areia movediça em que atolamos sem disposição para o esforço de sair.

Os anos me ensinaram a enfrentar com racionalidade os desencontros e as frustrações que o dia a dia impõe. Faço de tudo para impedir que a dor de uma perda não me torne amargurado nem descrente do sentido que a duras penas consegui atribuir à existência. A maturidade, conselheira persistente, traz alguma sabedoria para evitar que as adversidades nos roubem a alegria de estarmos vivos.

Não tenho experiência, entretanto, em lidar com angústias que invadem o espírito sem razão que as justifique. Muito menos com a sensação de aperto que se instalou meio no peito, meio na garganta.

A dor trouxe meu pai à memória.

Era um homem dedicado a manter a família e a criação dos filhos, responsabilidades que lhe exigiam trabalhar em dois empregos, das 8h à meia-noite. Num tempo em que nem aos sábados havia folga, o único dia em casa era o domingo, que ele passava entre dezenas de vasos de flores e o pequeno jardim na frente do sobrado em que morávamos.

O prazer silencioso que as plantas lhe davam era contagiante. Eu gostava de sentar no chão para observá-lo nessas horas. No fim da tarde, depois do banho, ele vinha para a poltrona da sala, ensimesmado, com a fisionomia carregada. Era tomado por uma angústia que ele comparava à do momento em que fecham a tampa do caixão de um ente querido.

A fim de torturá-lo, o padre da paróquia do bairro colocava a Ave-Maria, de Gounod, que anunciava a missa das 18h. Meu pai fechava as janelas e as cortinas para abafar a música que associei para sempre à angústia que ele sentia.

No frontispício do Pavilhão Dois do antigo Carandiru, havia um alto-falante para dar avisos e convocar presos para audiências, conhecido por todos como Rádio Boca de Ferro. O vai e vem dos presidiários deixa mais descontraídas as manhãs das cadeias. Chegam a dar a impressão de alunos num internato. À medida que a tarde avança, no entanto, o ambiente fica mais pesado, até atingir o auge no horário em que os carcereiros, com os molhos de chaves, trancam cela por cela. É quando o bater metálico das portas e o estalido dos cadeados ecoam pelas galerias vazias que o aprisionamento mostra sua face mais impiedosa.

Eu entrava na cadeia na hora do almoço e saía à noite. Não é que pontualmente às 18h, um infeliz colocava na Boca de Ferro um disco com a Ave-Maria que me evocava a tristeza da infância.

Uma segunda-feira em que terminei mais cedo o atendimento na enfermaria, atravessei o pátio central que dava acesso aos pavilhões no momento exato em que os camburões desembarcavam os presos transferidos das delegacias. Eram cerca de 50, que formaram fila indiana à espera da triagem.

Parei para conversar com o funcionário que os vigiava, um homem de cabeça raspada que dava dois de mim na altura e na largura, afamado por impor disciplina com metodologia pouco convencional, quando o alto-falante rachado da Boca de Ferro entoou a Ave-Maria.

O cair da noite, os recém-chegados, as muralhas a confiná-los e a Ave-Maria angustiaram meu interlocutor:

- Eu nessa fila, doutor, com essa trilha sonora, cortava os pulsos.

Meu pai faria o mesmo.

drauziovarella.com.br - DRAUZIO VARELLA

19 DE MAIO DE 2018

J.J. CAMARGO

DAS PESSOAS MAIS SIMPLES


Adoecer é o mais eficiente revelador do caráter. Grandeza, dignidade, coragem e, muito especialmente, delicadeza são escancaradas pela presença que encanta ou pela ausência que constrange. E a impressão que causamos, não podendo ser ensaiada, revela o que somos na nossa essência.

Corajosos, gentis e resilientes são expostos com a mesma intensidade com que pusilânimes, falastrões e bajuladores são cruelmente desmascarados.

Médicos experientes aprenderam que essas virtudes, que são claramente dependentes da pureza, se encontram com uma frequência comovente entre as pessoas mais humildes, essas que consideram que somos generosos enviados de Deus para socorrê-los.

Não por acaso, as mais candentes histórias de gratidão médica brotam dessas criaturas dóceis, generosas e transparentes.

Algumas delas comovem pela simplicidade que beira o rudimentar, muitas vezes atropelado pela insensibilidade de médicos jovens, que não têm paciência com esses toscos que estão sempre de coração aberto, desejosos de agradar, e tantas vezes sem saber como.

Percebi que o Osmar era uma das vítimas dessa intolerância de quem, tendo muitos pacientes para ver, estava sem paciência para tentar compor uma história truncada pela incerteza e por informações desencontradas. Pedi que deixassem o Osmar comigo quando ouvi do estagiário esta queixa: "Como é que o senhor espera que eu lhe ajude se depois de ter ficado neste ambulatório, ontem, por mais de seis horas, eu lhe peço que me diga o nome do médico que o atendeu, e o senhor responde que não sabia, mas achava que era uma mulher?! Se nem disso o senhor tem certeza, fica difícil, e haja paciência!".

Quando o pelotão de choque debandou, demorei um tempão para acalmar o Osmar, que, só então percebi, tremia.

Contou-me que era das Missões e viera a Porto Alegre para visitar a filha, e então teve uma dor em queimação no estômago e vomitara sangue. A filha não sossegara até que ele viesse para a emergência, mesmo tendo insistido com ela que isso ia passar e que tinha sido causado por uma mistura de pinhão com melancia.

Logo depois, um dos estudantes passou por ali e, com ar debochado, perguntou se eu já sabia que melancia com pinhão dava hemorragia.

O Osmar baixou os olhos constrangido e comentou: "Esse doutorzinho não acreditou no que eu contei, mas o que deixou ele mais irritado foi eu ter esquecido o nome da doutora. O senhor acha que se eu tivesse dito que ela tinha franja teria ajudado?".

"Acho que não, mas não te preocupe, Osmar. As mulheres não trabalham dois dias seguidos com mesmo penteado!". Tinha alívio e gratidão naquele sorriso contido. De qualquer maneira, a mão calosa que se demorou no meu ombro foi, para mim, o melhor gesto daquele dia.

jjcamargo.vida@gmail.com - J.J. CAMARGO


19 DE MAIO DE 2018
DAVID COIMBRA

Prontos para o crime



Eu e meu amigo Plisnou estávamos sem nenhum. Duros. Ou, como se dizia na época, Durangos Kids. Trabalhávamos, ambos, na sucursal do Diário Catarinense em Criciúma, o degas aqui como repórter, ele como laboratorista, profissão hoje extinta como os pássaros dodôs. Dividíamos um apartamento de três quartos com a Nádia Couto, nossa colega de jornal.

Ocorre que fervia e bramia o fim de semana, a Nádia tinha ido a Porto Alegre e, como já disse, nós não tínhamos nem para comprar um xis sem ovo - o salário só sairia na segunda. E agora? Fazia calor, as mulheres ondulavam dentro de minissaias sumárias, as cervejas estavam branquinhas de tão geladas e nós naquela ânsia de viver que queima os ventrículos de quem tem 20 anos de idade.

- Quem sabe nós vendemos alguma coisa aqui de casa? - sugeri ao Plisnou.

Mas vender o quê? Nosso apartamento era espartano, eu dormia em um colchonete, o sofá havia sido doado por uma amiga, a geladeira e o fogão eram usados e nós ainda pagávamos as prestações.

- E aquele negócio ali? - apontou o Plisnou.

O "negócio" era uma escultura que um artista plástico local, o Edi Balod, havia dado de presente à Nádia. O Edi é bem conhecido na região. De fato, aquilo devia ser o objeto mais valioso do nosso apartamento, certamente daria para financiar suntuosos jantares e festas históricas.

- Vamos vender! - concordei, entusiasmado, para, um segundo depois, ser acometido por um pequeno drama de consciência: - O que vamos dizer para a Nádia?

É que a Nádia adorava aquela escultura. Era o orgulho dela. Alguém chegava ao apartamento e ela corria para mostrar:

- Olha. Foi o Edi Balod quem fez!

Mas, ao mesmo tempo, não era justo nós dois, seus colegas de trabalho e de apartamento, seus amigões do peito, praticamente irmãos, não era justo nós passarmos tantas privações, tendo à mão um objeto de função apenas decorativa que poderia nos tirar das dificuldades.

- Além disso, esse negócio é meio nosso também - argumentou o Plisnou.

- Acho que é... E tem mais - acrescentei. - Poucas coisas são mais importantes do que cerveja gelada e amigos para dar risada!

- Isso! - exclamou o Plisnou. - A Nádia concordaria com isso!

- Até rima!

- Rima! "Cerveja gelada e amigos para dar risada"!

Assim, estancamos rapidamente nossos derrames morais e passamos os minutos seguintes debatendo a respeito da justificativa que apresentaríamos quando a Nádia voltasse. Teria de ser algo muito verossímil.

Não lembro que desculpa inventamos, lembro da dúvida posterior: onde arranjaríamos um comprador?

Repare como as coisas não são tão fáceis no mundo do crime.

Após mais alguns minutos de ponderações, decidimos levar a obra até a praça, onde a colocaríamos à venda. O plano já estava todo traçado, a falcatrua seria realmente cometida, quando o nosso amigo Nei Manique, o chefe da sucursal, bateu à porta do apartamento.

- O Edi Balod está convidando vocês para uma mariscada na casa dele - anunciou o Nei, sem nem dar bons dias.

Nos entreolhamos, admirados, eu e o Plisnou. Era muita coincidência o Edi Balod aparecer para nos salvar e, ao mesmo tempo, salvar sua obra de nossas garras ávidas. Agora poderíamos nos divertir sem precisar delinquir.

E foi mesmo um jantar suntuoso e foi mesmo uma festa histórica. Fico feliz ao lembrar desse episódio singelo por lembrar, também, que nós nos sentíamos tão felizes na época... É que éramos jovens. Sabíamos que tudo estava por ser feito nas nossas vidas e não levávamos nada a sério: nem o dinheiro, nem o sucesso, nem a nós mesmos.

Não somos mais jovens agora. Decerto que temos muito mais compromissos, mais cabelos brancos, mais gordurinhas localizadas e até um pouco mais de dinheiro. Mas há algo daquele tempo que não mudou: continuo não levando a vida a sério. Continuo pensando que poucas coisas são mais importantes do que cerveja gelada e amigos para dar risada. Se vendêssemos aquela escultura, até a Nádia pensaria assim. Não pensaria?

DAVID COIMBRA

sexta-feira, 18 de maio de 2018


II Congresso Estadual de Cultura 

Nos dias 9, 10 e 11 de maio realizou-se, em Bento Gonçalves, na Casa das Artes e no Grande Hotel Dall'Onder, o II Congresso Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul e o IV Fórum Estadual de Conselhos Municipais de Cultura. O primeiro congresso realizou-se há 31 anos. O evento fez parte dos festejos dos 50 anos do Conselho Estadual de Cultura, que teve a iniciativa da promoção.

A Fundação Casa das Artes, a Secretaria Estadual da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer (Sedactel), a Corsan, a Secretaria Municipal de Cultura de Bento Gonçalves, a Fundação Pablo Komlós e o Grande Hotel DallOnder foram imprescindíveis parceiros do evento. Na abertura, foi atração a Orquestra Sinfônica do Instituto Tarcísio Michelon.

Estavam presentes Victor Hugo, titular da Sedactel; o prefeito de Bento Gonçalves, Guilherme Pasin; Evandro Soares, secretário municipal de Cultura de Bento Gonçalves; Andre Kryszczun, secretário-adjunto da Sedcatel; Leoveral Soares, diretor de cultura da Sedactel; vereador Moisés Scussel Neto, presidente da Câmara de Vereadores de Bento Gonçalves; entre outras autoridades, que foram recepcionadas por Marco Aurélio Alves, Presidente do Conselho Estadual de Cultura. Após a abertura, o professor Carlos Jorge Appel, ex-secretário de Cultura do RS, proferiu palestra que trouxe muita emoção e informação e foi merecidamente ovacionado.

Aconteceram muitos painéis, com palestrantes do porte do uruguaio Alejandro Denes, coordenador de artes visuais do Uruguai, José Carlos Laitano, presidente da Academia Rio-Grandense de Letras; Rafael Balle, diretor de Economia da Sedactel; Paula Mascarenhas, prefeita de Pelotas; e Zuenir Ventura, um dos maiores jornalistas brasileiros e autor do livro 1968 - O ano que não acabou. Foram abordadas questões relevantes, especialmente ligadas à democratização no acesso aos processos e bens culturais.

Cultura e Comportamento; cultura como alavanca do desenvolvimento social e coletivo; financiamento; desafios na gestão cultural; participação social nas instâncias culturais; e criação, memória e patrimônio material e imaterial foram, entre outros, os temas abordados no evento, com muita inteligência, paixão e participações das plateias. Foram realizadas várias oficinas no centro de convenções do Dall'Onder, envolvendo questões essenciais como o papel do conselheiro municipal, o financiamento, gestão pública, elaboração de projetos culturais, proteção do patrimônio, processos de memória social e workshop de artes visuais.

Entre os painéis, ocorreram manifestações artísticas musicais e teatrais no palco do Anfiteatro Ivo Da Rold e na praça Ismar Scussel, que fica em frente à Fundação Casa das Artes. Os funcionários da Secretaria Municipal de Cultura de Bento Gonçalves, especialmente Ivete Todeschini Menegotto, foram competentes, incansáveis, simpáticos e contribuíram para o sucesso do Congresso.

a propósito...

A realização do II Congresso Estadual de Cultura e IV Fórum Estadual de Conselhos Municipais de Cultura, capitaneada por Marco Aurélio Alves, presidente do Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul, ressaltou a importância da cultura em nosso Estado. Através de um congresso, há debate e discussão sobre temas importantes na área da cultura, proporcionando o estabelecimento de metas conectadas com nossos dias.

Debater, ouvir a sociedade, propor políticas públicas e democratizar as ideias e as ações culturais foram os objetivos deste II Congresso, que deixou um gosto de quero mais e o forte desejo de realização de muitos outros.

Jaime Cimenti) - Jornal do Comércio http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2018/05/colunas/livros/627645-alcides-cruz-deputado-imortal.html


Alcides Cruz, deputado imortal 

Alcides de Freitas Cruz, o Dr. Alcides Cruz, deputado, jornalista, professor, escritor, advogado e promotor público em Porto Alegre, entre outras atividades, nasceu na Capital em 1867, 21 anos antes da abolição da escravatura no Brasil. Alcides, homem negro, apesar das dificuldades da época, que ainda hoje são enfrentadas pela população negra, em seus breves 49 anos de vida, soube estudar, trabalhar e agir em muitas funções privadas e públicas, tornando-se um dos maiores parlamentares que a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul já teve. 

Em boa hora e fazendo justiça, a Assembleia Legislativa, contando com a valiosa organização do Instituto do Patrimônio Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (Ihgrs) e do Memorial do Legislativo lançou, há poucos dias, o volume número 14 da Série Perfis Parlamentares Gaúchos. Getúlio Vargas, João Neves da Fontoura, José Antônio Flores da Cunha, Oswaldo Aranha, A.J. Renner, João Goulart, Carlos Santos, Leonel Brizola, Bento Gonçalves da Silva, Joaquim Francisco de Assis Brasil, Suely de Oliveira, Fernando Ferrari e Gaspar Silveira Martins são os demais 13 homenageados na Série Perfis. Alcides Cruz, como se constata, está em ótima companhia. 

A obra comemora os 150 anos de nascimento de Cruz, deputado em cinco legislaturas, além de ter sido chefe de gabinete de Júlio de Castilhos, então presidente do Estado. 

Cruz foi vice-presidente do parlamento na primeira década do século XX. Com grande conhecimento jurídico, foi professor de Direito na Ufrgs, faculdade que ajudou a fundar e, com grande força de trabalho, inteligência e vigor, soube enfrentar o cenário contrário aos negros e conquistar o merecido respeito. A edição presta um grande serviço ao Rio Grande do Sul, pois apesar de vida e obra notáveis, Alcides Cruz, nome de rua em Porto Alegre, era um ilustre desconhecido em nosso Estado. Fizeram muito bem a Assembleia e o Ihgrs em tirá-lo do esquecimento e, como acontece com o lançamento das boas biografias, ele foi tirado do túmulo e colocado a circular entre nós. 

O volume igualmente presta tributo ao povo negro, um grupo étnico tão capaz e tão importante como os demais grupos que compõe o nosso Estado que, como sabemos e apreciamos, é um riquíssimo e democrático mosaico cultural e étnico. 

lançamentos 

Estela sem Deus (Zouk Editora, 208 páginas), do romancista e contista carioca radicado em Porto Alegre Jeferson Tenório, é um romance que se passa na era Collor. Aos 13 anos, a delicada e forte Estela tenta livrar-se de mágoas e tece sua "maturidade improvisada". 

Melancolia, Deus, sofrimento e outras questões são enfrentadas por Estela, adolescente de um País eternamente embrionário. Da autodescoberta à alta performance - 10 comportamentos preciosos para você despertar sua inteligência emocional (Editora Leader, 152 páginas), organizado por Thereza Ferreira, com coordenação editorial de Andréia Roma e prefácio de Shirley Carvalhêdo Franco, é o primeiro volume da série Phases. 

Apresenta dicas para o leitor desenvolver sua inteligência emocional e potencializar suas habilidades. 

1942 - O Brasil e sua guerra quase desconhecida (Harper Collins, 320 páginas), do músico, escritor e diretor de documentários João Barone, baterista dos Paralamas do Sucesso, é a segunda edição da obra que explica a importância e o sacrifício dos soldados brasileiros na Segunda Guerra Mundial. 

Narrativa histórica bem escrita e embasada, a obra mostra muita aventura, ação e reflexão. - 

Jornal do Comércio http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2018/05/colunas/livros/627645-alcides-cruz-deputado-imortal.html

18 DE MAIO DE 2018
NOVA NOVELA

"Segundo Sol" chegou com leveza, cores e muito axé

As cores, o sotaque e os sons da Bahia amenizaram o clima do horário nobre da Globo com Segundo Sol, a nova novela das nove, que estreou na última segunda-feira. Depois de O Outro Lado do Paraíso, que tinha a vingança como tema, a trama de João Emanuel Carneiro vai falar sobre as segundas chances da vida. Com passagens pelo Carnaval de Salvador e algumas lindas paisagens do interior baiano, o autor apresentou seus protagonistas e antagonistas, introduzindo um universo narrativo bem mais descontraído do que a antecessora.

Beto Falcão (Emilio Dantas) é um cantor de axé que aceita ser dado como morto após seu irmão e empresário, Remy (Vladimir Brichta), e sua namorada, Karola (Deborah Secco), lhe convencerem de que poderiam lucrar com a história. Com isso, Beto vai parar num ilha onde conhece Luzia (Giovanna Antonelli). Em pouco tempo os dois apaixonam-se, mas o romance é atrapalhado por Karola e sua mentora Laureta (Adriana Esteves). Daqui alguns capítulos terá avanço no tempo - por enquanto, a novela se passa em 1999 - e todos estarão em novos momentos da vida.

Nesse começo foi possível perceber que o trio formado por Adriana, Brichta e Deborah tem potencial para render muitos frutos. Deborah está fazendo de sua Karola uma Íris (Laços de Família, 2000) mais malvada e chata. Já Adriana deixou Carminha para trás e mostra uma Laureta que mistura vilanias com humor e safadeza. Como havia prometido, João Emanuel apresenta uma história leve - lembrando muito Da Cor do Pecado, trama que escreveu para o horário das 19h em 2004. Mesmo os vilões não escorregam para maniqueísmos.

Destaque ainda para a trilha sonora, que reúne releituras de grandes clássicos do axé, com destaque para Alcione, que canta O Mais Belos dos Belos, sucesso de Daniela Mercury.

vanessa.scalei@zerohora.com.br - VANESSA SCALEI

18 DE MAIO DE 2018
DAVID COIMBRA

Os tristes bajuladores dos políticos


Corria o remoto ano de 1980 quando o escritor argentino Jorge Luis Borges foi entrevistado por Alessandro Porro, da Revista Veja. O mundo era outro. As pessoas usavam mullets. Os jogadores de futebol só calçavam chuteiras pretas. Mas, a folhas tantas, Borges teceu uma consideração que se encaixa perfeitamente na atual situação brasileira. Mais até: era um pensamento que valia na época, vale agora e valerá para sempre.

O repórter perguntou por que Borges demonstrava desdém para com os políticos. O velho escriba, então com 81 anos de idade e cego como Homero, respondeu assim:

"Não tenho nada a ver com eles. Não gosto deles. Para que eles cheguem a um acordo com seus interlocutores, com aquilo que eles chamam vulgarmente de ?massa? ou ?base?, os políticos devem sorrir, mentir, subornar ou aceitar suborno. Em outras palavras, comprometer-se. Um poeta não pode fazer isso, não deve. Ele deve aceitar seu destino como um rei antigo. Sem compromissos. O intelectual deve ter - como eu tenho - suas opiniões. Mas não pode se engajar num movimento, num partido, ao lado de um ou de outro. São poucos os políticos que sabem fazer política, mas, quando um intelectual tenta entrar nesse meio, então é o fim de tudo. Ele complica ainda mais as coisas, e torna-se até um elemento pernicioso para a sociedade, criador de confusão e divulgador de promessas mirabolantes que nunca serão mantidas. Eu sou um poeta, não um ativista".

Eis o que queria dizer. Eis o que sempre digo. Artistas e, sobretudo, jornalistas não devem fazer militância política. Devem ter suas opiniões, podem até admirar determinados políticos, mas jamais se comprometer com eles.

Nós jornalistas temos de ser, por princípio, desconfiados com os políticos.

Políticos, por mais bem-intencionados que sejam, buscam o poder e, nesta busca, valem-se do dinheiro ou da demagogia. Em geral, de ambos.

O processo de falência do PT expôs muitos artistas, muitos jornalistas, muitos intelectuais brasileiros. De repente, ficou claro que eles não se batiam pelo Brasil, nem pela justiça. Eles se batiam pelo seu grupo.

O símbolo desse triste engajamento foi Chico Buarque. Há, nas redes, um vídeo deprimente em que ele autografa um CD que será levado pelos líderes do MST para Maduro, o ditador da Venezuela. Só ver esta cena já foi uma dor. Mas o pior foi o Chico sentado ao lado de Lula, durante o julgamento de Dilma. Chico se pôs atrás de impenetráveis óculos escuros. Nada falava, mal se movia, parecia seco e murcho como um galho desfolhado. Talvez estivesse constrangido. Suponho que sim. Espero que sim. Um artista desse tamanho amasiar-se com políticos é a decadência. Só que sem elegância.

Não é porque eles são do PT. É porque eles são políticos. Chico Buarque, como tantos outros artistas e jornalistas do Brasil, é o anti-Borges. Logo ele, que se tornou grande sendo do contra, apequenou-se virando a favor.

DAVID COIMBRA

quinta-feira, 17 de maio de 2018


17 DE MAIO DE 2018
DAVID COIMBRA

Os jovens idiotas


Lá estava eu, rodando pela BR-101. Era fevereiro, fazia calor e senti dois centímetros de sono. Pouca coisa, mas, quando você está dirigindo, o sono tem mais poder do que Thanos, o inimigo invencível dos Vingadores. Por isso, antes que ele crescesse e me submetesse, decidi parar a fim de tomar um café restaurador. Para minha sorte, havia um pequeno restaurante bem perto, à altura de Criciúma.

Parei. Entrei no lugar, que era bem simpático, e logo vi uma pequena estante com livros. Fui ali dar uma olhada e deparei com um volume interessante, A História é Amarela, antologia de 50 das melhores entrevistas da Revista Veja. Abri o livro para examinar a lista dos entrevistados. Gente de alto quilate: Pelé, Elis Regina, Ronald Reagan, Fidel Castro, Bill Gates... Resolvi comprar. Fui ao caixa, mas o dono do café me disse que não estava à venda.

- Deixo aí para os clientes se distraírem - desculpou-se.

Devo ter feito uma cara muito decepcionada, porque nem precisei pedir. Ele se adiantou e propôs:

- Mas te vendo pelo preço que comprei.

Assim, saí de lá com o livro. Foi uma bela aquisição. Vou compartilhar com você alguns trechos de entrevistas. Não todas, é claro, porque são muitas: 50. Nelson Rodrigues, por exemplo, foi entrevistado em 1969 por Luiz Fernando Mercadante. Dentre tantos assuntos intrigantes que eles abordaram, houve um que, por coincidência, está na pauta atual, 49 anos depois. Nelson falou da revolta estudantil ocorrida em Paris em maio do ano anterior, e você sabe que, agora, neste nosso maio, jornais e emissoras de rádio e TV estão apresentando especiais a respeito do cinquentenário daquele movimento. As reportagens, em geral, dizem que a rebelião de maio de 1968 foi importante do ponto de vista libertário, digamos assim, embora não tenha alcançado nenhum objetivo específico. Nelson não pensava assim.

Como se sabe, Nelson, não raro, investia contra o senso comum dos intelectuais brasileiros. Perguntado por Mercadante se ele abominava a juventude, saiu-se desta maneira:

"Não, eu amo a juventude como tal. O que abomino é o jovem idiota, uma das figuras mais sinistras da nossa época. O jovem, como o adulto, como o velho, comporta todos os tipos. (...) O fato de um imbecil ter 17 anos transformou-se em um mérito formidável. O sujeito passou a ser seguido e respeitado não por ter tais ou quais méritos, mas por ter nascido em 1952. (...) É o que aconteceu na França, quando o jovem idiota, durante um mês, humilhou e ofendeu a sua pátria. E o que fizeram na França? Arrancaram paralelepípedos, viraram carros e incendiaram lixo. Uma juventude tão inepta que escrevia nas paredes ?É proibido proibir? e carregava cartazes de Lênin, Mao, Guevara e Fidel, autores das proibições mais brutais. Era a imaturidade erigida em virtude formidabilíssima, era o Poder Jovem, que é o próprio culto à imaturidade".

Nelson não gostava das esquerdas. Se você é de esquerda, provavelmente criticará o que ele disse a respeito de maio de 1968. Mas, se pensar sem paixões, concordará que o fato de alguém ser jovem não lhe confere sabedoria. Havia e há jovens idiotas. Só que os jovens aos quais se referia Nelson, os que nasceram em 1952, hoje têm 66 anos. Muitos deles tornaram-se importantes, muitos deles comandaram e comandam o Brasil. E seguem pensando do mesmo jeito, com as mesmas ideias. Com a mesma idiotia. Nelson observou que eles eram "figuras sinistras" daquela época, a época da sua juventude. Isso porque não viu o que eles fazem agora, na época da sua velhice. Pobre Brasil, entregue a tantos velhos jovens idiotas.

DAVID COIMBRA

17 DE MAIO DE 2018
ENTREVISTA CIRO GOMES - Pré-candidato à Presidência da República pelo PDT

"Minha agressividade será para proteger o Brasil"


Aos 60 anos, 38 deles na política, Ciro Gomes (PDT) prepara-se para concorrer pela terceira vez à Presidência. Sem sucesso nas primeiras tentativas, sonha em vencer no primeiro turno em 2018 para enfrentar "a maior crise" de um país tensionado.

Nas entrelinhas, contemporiza a necessidade de um "arco de forças" de centro-esquerda sob o risco de que nenhum nome do campo político chegue ao segundo turno. Parcelados, os sinais chegam ao noticiário vindos de nomes isolados de PT, PC do B e PSB. Nenhum oficializou-se.

O ex-ministro de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sequer descarta o apoio de legendas da base do governo Michel Temer (MDB), como DEM, PP e PR.

Natural de Pindamonhangaba (SP), o pré-candidato radicou-se no Ceará. No Estado nordestino, foi prefeito, governador, deputado estadual - mais tarde, também federal. Há uma semana, após participar de evento na Serra, recebeu ZH no hotel em que estava hospedado.

O senhor tem defendido duas reformas essenciais ao país: a fiscal e a política. No que consistiriam essas mudanças?

O país precisa debater reforma fiscal porque é completamente ociosa a compreensão de que poderemos tratar o problema fiscal em capítulos. Nos últimos anos, entranhamos o sistema tributário ao previdenciário de tal maneira que as ferramentas mais relevantes introduzidas para atenuar o desequilíbrio da Previdência são de natureza parafiscal: a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), o PIS e o Confis. Se proponho um IVA (Imposto sobre Valor Agregado), a grande modernidade que todo mundo está discutindo, tenho de eliminar o Cofins. Se elimino o Cofins, a CSLL terá de ser absorvida pelo Imposto de Renda ou pelo imposto sobre lucros e dividendos. Ou seja, subtraio duas graves receitas da Previdência. Por isso, é preciso abordar a reforma fiscal como coisa única.

Se eleito, apresentaria plebiscito ou referendo para discutir a reforma previdenciária?

Já na campanha, vou propor as bases conceituais da reforma. Se o povo me eleger, será com as ideias que propus. É uma providência para atenuar o impasse orgânico ao presidencialismo à brasileira. Também precisamos negociar as reformas fiscal e política em um redesenho do pacto federativo, chamando os Estados para partilhar o benefício desse novo desenho fiscal. Quero libertar a federação do jugo que o Estado nacional colocou os Estados, e o exemplo mais doído é o Rio Grande do Sul. O Fernando Henrique (Cardoso) "fez" de propósito. Acham que exagero, mas conheço a mentalidade dele. Foi uma vingança à 1932 (ano da Revolução Constitucionalista). Quando o (Antônio) Brito assinou (a renegociação da dívida, em 1998), disse que ele estava afundando o Rio Grande do Sul. Hoje, a Brigada Militar tem metade do efetivo que o (Alceu) Collares tinha, e o problema da violência está explodindo. É preciso redesenhar o pacto federativo emasculado pelo Fernando Henrique. Dezessete Estados estão em dívida. Nesse ambiente, você tem a possibilidade de atenuar o problema no Congresso fazendo grande negociação a atacado. Persistindo o impasse, aí, sim, convocar plebiscitos e referendos para resolver as reformas política e fiscal. Mas tenho muita esperança de deslindar antes. Conheço o ramo.

O governo gaúcho quer aderir ao regime de recuperação fiscal com a União. É um erro?

Erro mortal. Porque não vai ao ponto. O Rio Grande do Sul foi o primeiro Estado no qual a conta de inativos passou a de ativos. Um problema para onde o Brasil caminha se a bomba não for desarmada.

Qual a sua opinião sobre a descriminalização das drogas?

Não penso mais nada. Como intelectual e militante, minha opinião está na internet. Nunca me omiti. O grande erro está em o presidente assumir pautas identitárias que são justas, mas em confronto com a organicidade da sociedade. O papel do presidente é recolher o debate e chamar todas as frações da sociedade, até porque não existe um precedente internacional que possa se dizer "olha, ali está o exemplo que resolveu a parada".

Pautas identitárias são muito caras à esquerda. Esse posicionamento não pode lhe afastar desse campo político?

Sim, mas não irei me afastar desses assuntos. Apenas, respeitando a complexidade da sociedade brasileira e querendo ser presidente, irei identificar esses problemas e promover o debate. Não vou me omitir, nem adotar uma posição conservadora. Tenho minha opinião sobre todos esses assuntos, mas, como estou me preparando para ser presidente, assumo o compromisso com esses grupos identitários de pautar o debate.

Qual a chance de apoio do PT ao seu nome?

As diferenças mais profundas são minhas com o PT, mas estou com todas guardadas porque temos a responsabilidade de construir um caminho em que as nossas diferenças sejam estabelecidas sem quebrar pontes. Vivemos momento complexo e delicado. Temos de respeitar o tempo do PT, que é dele. E o meu é meu.

Nesse momento, a estratégia?

É tocar a minha bandinha.

Sua estratégia passa por tentar apoio do eleitorado de Lula, mas sem se vincular ao PT?

Sonho em ganhar essa eleição no primeiro turno, porque o presidente que ganhá-la com uma grande onda de opinião pública terá força para transformar a nossa realidade. Tenho pé no chão para saber que estamos no fim de ciclo, quando a tendência é de hiperfaturação do sistema representativo. Mas não irei abrir mão do sonho de unir o Brasil.

Considera-se o nome capaz de aglutinar o campo de centro- esquerda do país?

Não, porque, se entendemos que o principal partido desse campo é o PT e parte da burocracia do PT me tem como antagonista preferencial... Preciso entender esse processo com paciência e deixar o tempo do PT amadurecer. Se entendo que a tática deles está errada, só preciso esperar um pouco que eles também irão perceber. Agora, como eu, ninguém mais. Você admite que o PT irá apoiar a Manuela (D?Ávila)? Ou o (Guilherme) Boulos, que saiu do PT para o PSOL? Nunca fui do PT.

No cenário de candidaturas pulverizadas, a esquerda pode acabar fora do segundo turno?

Pode acontecer, mas irei lutar obsessivamente para ganhar no primeiro turno.

O presidente da Companhia Siderúrgica Nacional, Benjamin Steinbruch, filiou-se recentemente ao PP. Há especulações de que será o seu vice.

É fofoca natural da temporada. Ao contrário do mito que se fez de mim, converso com todo mundo. Irei procurar todo mundo na humilde ambição de ganhar no primeiro turno, o que é quase impossível.

Também circulam informações de que PP, DEM e PR podem apoiá-lo.

É fofoca. Agora, na política, a fofoca baliza as discussões. A pergunta simples é "por que não"? Meu projeto precisa de um arco de forças de centro-esquerda. Hoje, há um "por que não" que respeito muito: Rodrigo Maia é candidato desses três partidos.

Mas, por que sim?

Porque preciso de sustentação no Congresso. Não sou candidato a madre superior do convento, sou candidato a presidente do Brasil.

O senhor é conhecido pela "língua afiada". Como irá lidar com essa fama na campanha?

Irei reservar toda a minha agressividade para enfrentar o fascismo. A garotada não sabe o mal que isso faz. Quando um fascista chega, precipita rupturas. O fascista não compreende o antagonismo, e a sua atitude passa a ser a destruição. Esse cara, o Jair Bolsonaro (PSL), foi treinado para matar. Ele diz que é especialista em matar, e é mesmo. A minha agressividade será usada para proteger o Brasil. Estou doido para encontrá-lo em um debate porque vou tirar a sua máscara.

debora.ely@zerohora.com.br- DÉBORA ELY


17 DE MAIO DE 2018
+ ECONOMIA

DÓLAR PESA MAIS QUE FREIO

No dia em que se combinaram a quarta alta sucessiva do dólar no país e a divulgação do indicador do próprio Banco Central (BC) que mostrou freada na reação da economia, a instituição surpreendeu até quem defendia essa estratégia: manteve o juro básico em 6,5% ao ano. Antes da reunião, o BC havia sinalizado em comunicados e reiterado com entrevistas de seu presidente que a hipótese mais provável era corte adicional de 0,25 ponto percentual.

Uma semana antes da reunião, Ilan Goldfajn, presidente do BC, respondeu a uma pergunta sobre o efeito da alta do dólar na decisão afirmando que seriam levadas em conta apenas inflação e atividade econômica. Além de confirmar um duplo mandato não formalizado para o BC brasileiro, reforçou as projeções de um novo corte. Pela primeira vez, não coordenou as expectativas, o que vinha fazendo desde que assumiu o BC.

No comunicado divulgado após a reunião, o BC menciona "a evolução dos riscos (...) associados à normalização das taxas de juros em algumas economias avançadas". Assim, o BC vê redução das "chances de a inflação ficar abaixo da meta (...)". Ou seja, preços vão subir. É o risco Trump.

Mas a instituição também aponta responsabilidade interna, ao observar que "frustração das expectativas sobre a continuidade das reformas e ajustes necessários na economia brasileira podem afetar prêmios de risco e elevar a trajetória da inflação no horizonte relevante para a política monetária". É o risco Temer.

O recuo de 0,13% no Indicador de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br) no primeiro trimestre, em relação ao período anterior de três meses, provocou nova revisão das projeções para o PIB no ano. Os analistas já haviam reduzido as estimativas médias de 3% para 2,5%. Desta vez, muitos cortaram de 2,5% para 2%. Novas alterações vão aguardar o anúncio oficial do PIB de janeiro a março, marcado para o próximo dia 30. Se confirmar dado negativo, haverá tensão sobre o período abril-junho. Um novo recuo coloca o país de volta na recessão.

marta.sfredo@zerohora.com.br - MARTA SFREDO


17 DE MAIO DE 2018
L.F.VERISSIMO

Estado assassino

Jair Bolsonaro é um apologista da tortura e nunca fez segredo disso. As barbaridades que ele diz são esperadas, ninguém deveria se surpreender quando - comentando as revelações da CIA sobre o Geisel - ele compara assassinato de Estado com palmadas no bumbum de um filho. Não se sabe se sua candidatura sobreviverá às barbaridades, mas por enquanto seus apoiadores e eleitores declarados podem sustentar que seu candidato, digam o que disserem, é sincero como nenhum outro.

O Bolsonaro folclórico é sua própria explicação. O que explica tanta gente disposta a elegê-lo, segundo as pesquisas de intenção de voto, sabendo o que sabe ou não querendo nem saber? Ninguém se incomoda que fomos um Estado assassino? Ninguém se importa que até hoje nenhum torturador foi condenado em primeira, segunda ou terceira instância no Brasil? A falta de memória ou de idade justifica a ignorância de muita gente sobre o que foram os anos da ditadura, mas a culpa disto é do silêncio dos militares sobre seu passado e seus crimes. Não se ouviu nem um "Desculpe, gente".

Quantos se lembram ou ouviram falar do quase massacre no Riocentro, no governo Figueiredo, o último dos generais presidentes? Só não morreram centenas de pessoas no show que aconteceria no local porque a bomba que deflagraria a tragédia explodiu no colo do capitão que a acionaria. Qual foi a consequência do atentado, que seria atribuído aos comunistas? 

Nenhuma. Pelo resto do seu governo, Figueiredo teve que conviver com aquele elefante na sala, tendo que responder "Que elefante?" sempre que lhe pediam explicações. O Figueiredo já morreu, o capitão, não sei, mas o elefante continua na sala, sem nunca ter sido explicado. E o elefante continua em silêncio.

L.F.VERISSIMO

quarta-feira, 16 de maio de 2018



16 DE MAIO DE 2018
FÁBIO PRIKLADNICKI

ESPECTADORES


Teatro lotado. É lindo quando isso acontece, até a sonoridade da expressão é boa de se ouvir. Fica ainda mais legal quando o público não comparece apenas pelo fetiche de ver ao vivo uma estrela da televisão, mas pelo interesse em conhecer um trabalho teatral que despertou sua atenção. Assim foram as sessões a que assisti na primeira semana do 13º Festival Palco Giratório Sesc/POA, evento de teatro, dança e circo que vai até dia 26 na Capital. Quando as salas não estavam lotadas, tinham pelo menos um ótimo público.

Festivais costumam emprestar um selo de qualidade para as atrações. Se passou pelo crivo da curadoria (quando há curadoria), vale a pena ver. Nem sempre se gosta, mas o risco faz parte da experiência. Certo tempo atrás, havia - não sei se ainda há - um mito difundido entre artistas de que se um espectador assiste a um espetáculo e não gosta, jamais volta ao teatro. Será? Ainda estamos tentando entender as mudanças no comportamento do público nos últimos anos, especialmente com a tentação dos serviços de filmes e séries por demanda e por streaming consumidos no conforto do lar.

Ainda lembro de um espetáculo de Gerald Thomas no enorme Teatro do Sesi em 2005, Um Circo de Rins e Fígados, com Marco Nanini. Eram outros tempos. A última vez em que vi uma peça no Sesi foi em setembro último, no Porto Alegre Em Cena, um trabalho dirigido pela espanhola Angélica Liddell, nome de destaque internacional - muito embora sua proposta experimental possa ter afastado espectadores. Difícil comparar, mas uma ampla seção da plateia estava vazia na seção a que assisti.

Guardadas as proporções, é por isso que os teatros lotados do Palco Giratório emocionam. A presença desses espectadores nos devolve a crença nas artes cênicas como uma força transformadora. Até agora, na maioria das vezes, eles foram bem recompensados.

Alguns destaques: a atriz Amanda Lyra (SP) exibiu uma contundente atuação entre a narração e a representação como uma mulher sufocada pela vida de esposa e mãe no solo Quarto 19; o Coletivo Negro (SP) do frontman Jé Oliveira apresentou um acontecimento teatral-musical embalado pelo rap dos Racionais e pelos relatos das vidas de homens negros em Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens; a Cia. dos Atores (RJ) mostrou virtuosismo e bom humor na fábula política Insetos, dirigida por Rodrigo Portella, o mesmo encenador de Tom na Fazenda, tecnicamente perfeita, que causou grande impacto cênico com uma história de homofobia e violência.

FÁBIO PRIKLADNICKI

16 DE MAIO DE 2018
DAVID COIMBRA

O monstro do Dia das Mães


Um bicho que mata um homem deve morrer, manda uma regra internacional não escrita, mas aceita em toda parte. Parece cruel, porque a fera que mata o homem não o faz por maldade ou gosto, e sim por medo ou fome.

É que nós, Homo sapiens, valorizamos muito a vida humana. O que é mais do que agir em causa própria - trata-se de uma imposição do convívio em comunidade. Desde que houve civilização, houve o interdito do assassinato, seja pelo quinto mandamento de Moisés, seja pelo Código de Hamurabi, seja pela tradição oral que atravessa a poeira dos séculos.

Sem a dura repressão ao homicídio, não existe civilização.

A preservação da vida humana está na base da sociedade. De qualquer sociedade, em qualquer tempo. Você pode medir o desenvolvimento e a sofisticação de uma sociedade pelo valor que seus integrantes dão à vida.

O Brasil é o país do mundo em que ocorrem mais assassinatos a cada ano. Dá bem a medida do que é o Brasil - ou no que o Brasil se transformou. Mas poucas vezes a baixeza da sociedade brasileira ficou tão exposta quanto no vídeo daquele assalto em que uma policial à paisana mata um bandido em São Paulo, agora mesmo, no último Dia das Mães.

Se você não viu, resumo: um grupo de crianças e suas mães esperava pela abertura de uma escola no início da manhã de sábado, quando um homem chegou, apontando um revólver para elas, anunciando assalto. Havia uma PM entre as mães. Ela sacou rapidamente sua arma da bolsa e alvejou o bandido no peito três vezes, matando-o.

Deu-se feroz debate acerca da reação da policial. Alguns a criticaram, outros a elogiaram. Falou-se de tudo. Mas ninguém se manifestou a respeito do que o assaltante fez: ele investiu com a arma apontada para mulheres e CRIANÇAS.

Não é algo incomum no Brasil. A todo momento, sabe-se de mães e pais assassinados na frente dos filhos. Mas, desta vez, ficou registrado. Nós todos testemunhamos, pela internet e pela TV, um homem puxar de um revólver e apontar para um grupo de crianças.

Como ele pôde fazer isso? Como pudemos não nos escandalizar com isso?

Criança tem muito a ver com bicho, não é? Criança é inocente. É por essa razão que os personagens da Disney fazem sucesso. Porque as crianças se identificam com ratinhos, patinhos e cachorrinhos. Crianças querem é brincar, além de comer coisas gostosas e dormir quando sentem sono. E nada mais.

Então, porque são inofensivas e indefesas, as crianças têm de ser protegidas pela sociedade. Afinal, elas são a própria vida. Elas são a sobrevivência da comunidade. Mas o nosso país sequer se choca com a cena de crianças sendo ameaçadas por uma arma de fogo.

Há várias teses sobre o mínimo valor que se dá à vida humana no Brasil. Nenhuma explica o que aconteceu em São Paulo, no Dia das Mães.

O que aquele homem queria, em troca, talvez, da vida de uma criança? Um celular? Um punhado de reais?

Isso não acontece por causa da pobreza. Nem pela desigualdade. Nem pela deficiência da educação formal. Isso não acontece devido à corrupção ou à incompetência do governo.

Isso é a decadência moral. É o ponto mais baixo que pode atingir uma sociedade. Não estamos mais formando bandidos, no Brasil. Estamos formando monstros.

DAVID COIMBRA