20 de março de 2015 | N°
18107
DAVID COIMBRA
Violada ao meio-dia
Um cara deixou uma pá vermelha na
minha rua. Foi no domingo retrasado, isso. Suponho que estivesse tirando neve
da frente de casa e, depois de limpar o caminho, pensou: “Como amanhã terei de
remover mais neve, vou deixar a pá aí”.
E lá a pá ficou. É uma pá bonita,
tanto quanto pode ser bonita uma pá. É bem novinha, deve ter sido comprada dias
atrás.
Quando passo pela rua, vejo
aquela pá. Isso está me irritando. Por que ninguém rouba a pá? Esse dono da pá,
qual é a intenção dele ao abandoná-la ao alcance da mão do transeunte? Quer se
exibir? “Vou deixar a pá aqui para mostrar que não será roubada.” Será essa a
ideia? Se for, vou lá e vou pegar aquela pá. Por Deus que vou.
Aqui, nesta vírgula dos Estados
Unidos, as pessoas fazem assim com suas coisas. As crianças são chamadas pelas
mães para o jantar, largam suas bicicletas e vão correndo para dentro de casa.
As bicicletas ficam lá, deitadas de lado onde caíram, e ninguém nem olha para
elas.
Em duas noites de temperatura
amena, vi duas bolsas de mulher penduradas em carrinhos de bebê sobre a grama
de jardins sem cerca, não havendo o menor sinal das donas pela vizinhança.
Aliás, nenhuma casa é cercada e em nenhum lugar existe vigilante ou porteiro,
os bancos não têm guardas e os moradores dos edifícios mantêm seus carros na
rua. Tempos atrás, comprei uma TV pela internet e ela ficou uma tarde inteira
no saguão do meu edifício, junto com outras compras, de outros moradores.
Mas como pode isso?
Já em Porto Alegre, soube que,
dias atrás, ao meio-dia de uma segunda-feira, uma moça foi arrastada por dois
homens para dentro da Redenção, onde a agrediram sexualmente sem que ninguém
interferisse. Depois, ao registrar a queixa, a policial a aconselhou a comprar
spray de pimenta e esquecer o caso. Imagine a humilhação, a revolta e o
desamparo que essa menina está sentindo. Um caso de violência sexual, não um
roubo de bicicleta, e é assim que a sociedade o encara.
Será que os americanos são mais
honestos do que os brasileiros?
Não pode. Até porque, onde moro,
há gente do mundo inteiro. Na sala de aula do meu filho, estudam 14 crianças de
sete nacionalidades diferentes. Só no meu bairro são faladas 50 línguas!
Muitos, como eu, chegaram adultos aos Estados Unidos.
Então, não é a educação formal do
país a razão dessa honestidade toda. Nem algum traço cultural dos americanos,
porque brasileiros, hondurenhos, chineses, japoneses, espanhóis, coreanos,
todos se comportam da mesma forma por aqui.
O que pode ser?
Direi: é a punição. A certeza de
que qualquer ilícito cometido será punido dura e rapidamente.
Há quase 2,5 milhões de pessoas
presas nos Estados Unidos, cinco vezes mais do que no Brasil. Nos Estados
Unidos, quem não segue as regras é punido. Ponto. Essa é a lógica de qualquer
país em que a democracia funciona: o acordo social tem de ser cumprido.
Já disse e repito: no Brasil de
hoje, é mais importante construir presídios do que universidades. Em primeiro
lugar, porque os presidiários não podem ser tratados como animais, como ocorre
neste Brasil de masmorras infectas e superlotadas. Em segundo lugar, para dar
espaço a mais pessoas que deveriam estar lá. Punição não é vingança. Punição é
didática. A punição educa.
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