quarta-feira, 30 de setembro de 2015



30 de setembro de 2015 | N° 18310 
MARTHA MEDEIROS

PODER E STATUS


Três anos atrás, fui a Brasília receber a Ordem do Mérito Cultural. Eram entre 30 e 40 agraciados de diversas regiões do país. Chegando ao hotel, soube da programação: a entrega da comenda seria na manhã seguinte, no Palácio do Planalto, e à tardinha haveria um coquetel no Palácio da Alvorada. Fomos avisados de que cada um de nós teria um carro com motorista à disposição enquanto estivéssemos na cidade.

O dia amanheceu. Enquanto me arrumava para a cerimônia, fui até a sacada do quarto e vi uma fila de sedans pretos enfileirados na porta do hotel. Desci até o lobby para juntar-me ao grupo. Então, em fila, fomos conduzidos cada um para um carro, e saímos em comitiva, todos ao mesmo tempo, para o mesmo local. Patético, pra dizer o mínimo.

Não estou depreciando a honraria concedida, da qual me orgulho muito, mas óbvio que tinha algo errado ali, como sempre teve.

Na Suécia, deputados moram de segunda a sexta em apartamentos funcionais de 40m2 com lavanderia comunitária. Não têm empregados. Seus gabinetes de trabalho possuem 18m2, sem secretária, assessor ou carro com motorista. O dinheiro do contribuinte não é usado para privilégios de qualquer espécie. Além do bom uso do dinheiro público, essa postura é um seletor natural: quem quer mordomia, que bata em outra vizinhança. Entra para a política apenas aquele que deseja servir ao país, e não ser servido por ele.

O papa Francisco, dias atrás, circulou por Washington a bordo de um automóvel compacto e popular, um gesto simples que ajudou a redefinir o que é poder. Todos nós merecemos eficiência e conforto. Buscar mais que isso não é crime, mas é uma necessidade supérflua. Moramos em apartamentos mais espaçosos do que de fato precisamos, contratamos funcionários para fazer o que poderíamos fazer nós mesmos e dirigimos veículos cuja potência a lei nem permite testar (qual a vantagem de um carro ir de 0 a 100 km/h em cinco segundos, a não ser que estejamos fugindo da polícia?).

Em nossa sociedade, a aparência reina. O bairro em que você mora, a marca do seu jeans, o hotel em que você se hospeda: além do benefício real (a qualidade) há o benefício agregado – o status. Tudo bem. Só que status e poder não são a mesma coisa.

Status é ranking. Costuma ser valorizado por quem verticaliza as relações. Não vejo problema em se proporcionar coisas belas, saborosas, requintadas. Se são pagas com o próprio suor, é um direito adquirido, mas não confere poder algum, apenas bem-estar privado.

O poder é horizontal. Poderoso é aquele que distribui, compartilha, multiplica. Que produz ideias, arte, soluções, e as torna úteis e benéficas para os outros. Que não passa a vida tentando preencher o próprio vazio.

Não precisamos que nossas coisas falem por nós, a não ser que nossos atos já não digam nada.



30 de setembro de 2015 | N° 18310
ARTIGOS - MARCEL VAN HATTEM

A HORA DO DESAPEGO


Passados os projetos de aumento de receita que foram votados na Assembleia Legislativa no dia 22 de setembro, é o momento de o governo apresentar à sociedade as medidas que adotará para a redução das despesas. Se é verdade que diversas ações foram tomadas nessa linha, é verdade também que nenhuma delas tem um impacto profundo na estrutura do Estado gaúcho.

Reformas estruturais – privatizações, concessões, até liquidações, se necessário – precisarão ser adotadas com convicção, ou não se fará o aparato público caber na receita. Um Estado gigantesco, tributador e ineficiente é também injusto e imoral! De que serve uma gráfica estatal se o cidadão não tem segurança? Ou uma estatal de silos e armazéns, quando há filas nos hospitais? Ou mesmo um banco estatal, quando a educação pública é tão precária? Como manter essas estruturas defasadas, enquanto o Estado não entrega aos cidadãos os serviços básicos pelos quais ele paga?

É hora de exercer o desapego – deixar o supérfluo para trás para manter o essencial funcionando.

Não se trata de Estado mínimo, como ataca a esquerda, mas, sim, de um Estado moral, que entrega o que vende ao cidadão. Sem a prestação dos serviços, o imposto não é mais do que um confisco, uma apropriação pelos políticos do dinheiro do cidadão.

Não basta fazer como faz a esquerda: ser contra o aumento de impostos e também contra o corte de despesas – numa matemática insana que trouxe o Rio Grande do Sul ao caos no governo passado, e faz o mesmo em Brasília. Essa é uma conduta irresponsável e oportunista.

Estou entre aqueles que são contra o aumento de impostos mas não cruzam os braços esperando a vaca ir para o brejo, torcendo para o “quanto pior, melhor”. Sou contra aumento de impostos porque acredito que o ajuste fiscal deve ocorrer na coluna das despesas. Se enfrentar as despesas, exercer o desapego e voltar todos os esforços do Estado para os serviços de segurança, saúde e educação, o governador Sartori entrará para a história como o gestor que não passou adiante o problema, mas o enfrentou nas suas raízes.

Deputado estadual (PP)



30 de setembro de 2015 | N° 18310 
MOISÉS MENDES

Cadeira na calçada


Uma cena de primavera que sempre imagino. Num sábado de manhã, colocar uma mesinha com três ou quatro cadeiras na frente de casa e ficar esperando que alguém passe e queira sentar. Conversaríamos, em dupla ou em grupo de quatro ou cinco pessoas, sobre qualquer coisa. Talvez com alguém em pé, dando pitaco na volta. E uma corruíra cantando na pitangueira. Gente que talvez eu nunca tenha visto antes, outros que algum dia vi passar, mas não sei quem são, ou vizinhos que só vejo abrindo o portão.

Colocaria uma placa ao lado da mesa, com o aviso: sente-se e proseie, o tema é livre. Diferente de uma mesa de bar, porque tudo seria casual. No cara a cara, sem ataques encobertos por máscaras e falsas identidades do Facebook ou pelas notas desaforadas postas ao pé de textos na internet. Sem valentes que ficam atrás das saias da vida virtual.

Ninguém chamaria ninguém de comunista, de petralha ou de coxinha. Falaríamos de futebol, principalmente do centroavante, essa figura que o Grêmio conseguiu desinventar e não colocar nada em seu lugar. Eu diria que ninguém foi e nunca será maior do que Alcindo, o Bugre Xucro. E se daria o debate.

Falaríamos de política e do programa do PSDB na segunda-feira na TV, quando Aécio disse: “Somos oposição, sim, mas somos oposição a esse governo; não somos e nem jamais seremos oposição ao Brasil”.

Em julho, Aécio havia dito em uma entrevista à Rádio Itatiaia, de Belo Horizonte: “O que temos consciência clara é que nós, do PSDB, em primeiro lugar, somos o principal partido de oposição ao Brasil”.

Ficaríamos uma hora discutindo o esforço de Aécio para se corrigir, três meses depois. E falaría- mos do futuro depoimento de Lula à Polícia Federal, como testemunha da Lava-Jato. Há mais de 10 anos tem gente esperando para depor na Justiça sobre o mensalão tucano. Talvez nunca venham a ser chamados. Por que o Lula furou a fila?

Em alguns momentos, os ânimos até poderiam ficar exaltados, mas apenas por segundos. Temas leves e pesados seriam alternados. Falaríamos até da descoberta de água em Marte.

E então alguém diria: o que seria de Marte se paulistas sedentos decidissem explorá-lo? Eu até imaginaria uma mesa em alguma calçada de Marte. Desde que os tucanos não chegassem antes e transformassem Marte em uma Cantareira. Marte no volume morto.



30 de setembro de 2015 | N° 18310 
DAVID COIMBRA

Queridxs amigxs


Astrônomos descobriram que um cometa vai cair bem em cima do Rio de Janeiro, esmagando a cidade inteira. Mas não se preocupe, isso só acontecerá em 3 ou 4 milhões de anos, é possível que nenhum de nós esteja vivo então, e que o Botafogo até já tenha sido campeão da Libertadores, embora duvide que consiga ser do mundo.

Mesmo assim, fico inquieto. Temos dificuldades com planejamento, no Brasil. Se deixarmos para os últimos 10 ou 12 mil anos, é certo que as obras de remoção vão atrasar e que os cariocas serão amassados pelo cometa, que nem o foram os dinossauros por aquele meteoro que atingiu o México, há 65 milhões de anos.

Fico encantado com a capacidade dos cientistas de descobrir essas coisas. Os cometas que caíram, os cometas que cairão, e tudo mais. Eles sabiam sobre o eclipse da Superlua, no domingo passado. Aquilo foi lindo. A Lua se escondendo nas sombras na hora exata em que os cientistas disseram que aconteceria.

Como eles são sabidos. Não apenas os cientistas. Hidráulicos e eletricistas, por exemplo, são detentores de um conhecimento que me fascina. Além de tantos outros sábios, como o pessoal do help desk e os mecânicos de carro.

Já eu sei de pouquíssimas coisas. Uma delas é algo que aprendi sobre a nossa língua portuguesa: ela é fonética, e isso é genial. Imagine que com apenas 23 sinais, representando sons, somos capazes de expressar tudo que existe no mundo. Todos os pensamentos. Todos os sentimentos. Todos os objetos e animais.

Posso escrever uma palavra abstrata, algo que não existe, por exemplo: “Iglenho”. Posso escrever isso, e você saberá pronunciar. As escritas japonesa e chinesa são muitíssimo inferiores à nossa, desculpem-me os entusiastas do Oriente. Porque são visuais, são ideográficas, as pessoas têm de decorar milhares de símbolos.

Nossa escrita e nossa língua, portanto, são pontos excelsos da evolução humana. Por isso, preciso pedir às feministas que parem com essa história de escrever “amigxs” em vez de “amigos”, com a presunção de que estão lutando contra um preconceito de gênero. Quando vocês fazem assim, queridxs amigxs, vocês estão subvertendo a lógica da língua portuguesa, porque ninguém consegue ler “axs mxxs carxs amigxs”, esse troço não existe. De onde é que vocês tiraram essa ideia? “PresidentA” já é medonho. Sou contra o impeachment, mas, quando ouço alguém falar presidentA, tenho vontade de irromper Planalto adentro e derrubar a Dilma a golpes de caneta. A palavra “presidente” já é neutra, como vocês querem: “o” presidente, “a” presidente. Tanto faz.

Aliás, o português, ou, se vocês preferirem, “a” língua portuguesa, é, como o Direito, o calendário e até o cristianismo, uma herança do Império Romano. Deriva do latim, e no latim existia esse gênero neutro. Na língua portuguesa não existe, mas nós temos os nossos lindos artigos: o “o”, o “a”. Quando escrevemos “alunos”, ao nos referirmos a moços e moças estudantes, não é por machismo. Há deslumbrantes palavras femininas que designam os dois gêneros. Um másculo carvalho sempre será uma árvore. Qual a semelhança entre ele e uma mulher? Talvez porque ambos gerem frutos, o que não deixa de ser uma poesia. Aliás, a poesia, mais importante do que o poema, é feminina. E as cidades são femininas também, inclusive “o” Rio de Janeiro, que será destruído por aquele cometa.

Não destruam também a língua portuguesa, a nossa pátria, como diria Fernando Pessoa, a “última flor do Lácio, inculta e bela”, como diria Bilac. Viram? Ela é a pátria, ela é uma flor. Ela é uma menina!

Cervantes, que em espanhol escreveu o primeiro grande romance do planeta, era apaixonado pela língua portuguesa. Chamava-a de “la Dulce”. Doce. Como uma mulher. Como vocês. Sejam doces com ela. Não a maltratem. Por favor.

terça-feira, 29 de setembro de 2015



29 de setembro de 2015 | N° 18309 
CARPINEJAR

VOCÊ É VASSOURA OU RODO?

A vassoura e o rodo são figuras antagônicas em casa. Não têm igual temperamento.

Podemos distinguir as pessoas em dois grupos. Algumas varrem os problemas um pouco por vez; outras, unicamente limpam quando o piso está comprometido.

A vassoura é para quem cuida da sujeira um pouco por dia, o rodo é para quem deixa para socorrer o chão tarde demais.

A vassoura é filha do vento e do sol, o rodo é filho da água e da noite.

A vassoura é gentil, o rodo é abrupto.

A vassoura é casada com a pazinha, o rodo é solteiro.

A vassoura mima o tapete, o rodo esnoba o balde.

A vassoura sai para a rua e fala com os vizinhos, o rodo vive trancado e não gosta de conversa.

A vassoura solta os cabelos, o rodo esconde a calvície com o turbante.

A vassoura é supersticiosa, acredita em bruxas e simpatias, o rodo é ateu.

A vassoura procura mostrar o que está escondido debaixo do tapete em montinhos, o rodo joga tudo para o ralo.

A vassoura é véspera, o rodo é calamidade.

A vassoura é paz, o rodo é desespero.

A vassoura é controle, o rodo é descontrole.

A vassoura é chamada para qualquer hora, o rodo só é chamado em caso de alagamento.

A vassoura fica atrás da porta, o rodo apenas é visto em banheiros sem cortina.

A vassoura enfrenta degraus, o rodo aproveita declives e lombas.

A vassoura dança, o rodo não mexe o quadril.

A vassoura se molda ao mundo, o rodo é quadrado.

A vassoura se espalha, o rodo se isola.

A vassoura faz amizade com as folhas, o rodo manda embora.

A vassoura trabalha em equipe com a lixeira, o rodo trabalha sozinho.

A vassoura passeia em manhãs e tardes de sol, o rodo pisa em poças.

A vassoura solta os braços, o rodo tensiona os braços. Com a vassoura, erguemos o queixo; com o rodo, baixamos a cabeça.

A vassoura tem esperança de reencontrar brincos perdidos, o rodo empurra o que acha para o esgoto.

A vassoura pode ser de palha e queima, como toda paixão, o rodo tem borracha e não se mistura, como toda tristeza.

A vassoura se doa mais do que o rodo. O rodo reclama mais do que a vassoura.

A vassoura canta, o rodo grita.

A vassoura pede licença, o rodo é mal-educado.

A vassoura é feliz, o rodo é rabugento.

Apesar do mesmo corpo, as cabeças são totalmente diferentes.


29 de setembro de 2015 | N° 18309
NO ATAQUE | Diogo Olivier

TENDÊNCIAS

Assim que virou a chave do Brasileirão para a Copa do Brasil, a Província de São Pedro se encheu de perguntas. Eu mesmo já fui instado a responder várias. É abrir a porta de casa bem cedinho e o vizinho dispara. Quem passa? Grêmio? Inter? Os dois? Nenhum? Haverá Gre-Nal?

Bem, bola de cristal ninguém tem. Pode-se falar em tendência, pelo que se vê no campo. Não sem antes, claro, dar uma passadinha no posto de saúde literário para aquela vacinação básica: favoritismo não ganha jogo, em mata-mata tudo pode acontecer, futebol é caixinha de surpresas e por aí vai.

Pois bem: a tendência é que Grêmio e Palmeiras eliminem Fluminense e Inter com naturalidade.

DIFERENÇAS

O Grêmio vem jogando um futebol consistente e com padrão. Oscila pouco. Exibe regularidade em bom nível, como no 3 a 1 sobre o Avaí. Terá o retorno de quase todos os titulares. Serão 40 mil ao seu lado na Arena. O Fluminense não faz uma partida convincente há meses.

O Inter vai da vitória heroica sobre o Corinthians ao empate medonho com o Figueirense. Acumula derrotas fora de casa em 2015. Argel montou uma equipe emergencial, com D’Alessandro, Sasha e Vitinho, mas eles não estarão no Allianz Parque. Tem de reconstruir um segundo time em apenas 40 dias de trabalho na hora de decidir.

São as tendências para amanhã.

DESEQUILÍBRIO

O Santos teve 62% de posse de bola. O Inter, 38%. Faltas? O Inter cometeu 16, quase o triplo do Santos, que exibiu outra estatística expressiva: nove arremates na direção de Alisson, entre gols, travessão e defesas salvadores. O Inter, três, somando o pênalti convertido por Valdívia.

Portanto, ao contrário do que afirmou Argel, o jogo não foi equilibrado, e sim desequilibrado em favor do Santos. Que, por isso, fez 3 a 1. Para corrigir a atuação ruim da Vila, é preciso, antes, aceitá-la e reconhecê-la.

INTER EM COPA

É hoje, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a sessão de estreia do documentário Copinha, Um Sentimento.

Em 30 minutos, o filme conta a história do Bar Copinha, há anos ponto de encontro gaúcho para assistir a jogos do Inter em Copacabana. Carlos Guilherme Vogel, Fábio Erdos e Marcelo Engstter assinam direção, roteiro e produção. A obra da Peleja Filmes foi bancada com doações de torcedores pela internet, entre elas uma bem generosa: da atriz Julia Lemmertz, colorada fanática.

COMANDO GAÚCHO

O gaúcho Luciano Elias foi contratado pelo Comitê Organizador Rio-2016 para ser o diretor-geral do Complexo Esportivo Deodoro, parque que receberá 11 modalidades dos Jogos Olímpicos, localizado na zona oeste. Indicado pela Fifa, Elias exerceu o cargo de gerente de operações do Beira-Rio durante a Copa do Mundo, ano passado.



29 de setembro de 2015 | N° 18309
ARTIGOS -JORGE BARCELLOS*

E O PADRASTO, COMO FICA?


Já ficou claro pela crítica que a aprovação do Estatuto da Família representa um retrocesso em direitos adquiridos por casais homoafetivos e frente a jurisprudência emitida pelo STF, mas pouco se falou dos efeitos sobre a figura dos padrastos. Afinal, aquele que não é pai biológico de uma criança mas a educa como se fosse é ou não atingido pelo projeto? Pela proposta de lei não, já que o texto afirma que a família é composta por homem e mulher e seus descendentes. Enteado não é filho do pai, logo não há família. Nada mais retrógrado.

Marcos Piangers está fazendo sucesso com o livro Papai é Pop justamente narrando suas aventuras como pai. E a primeira coisa que o autor fala é que ele nunca conheceu o próprio pai, razão pela qual faz questão de registrar as aventuras como um. Com pais separados, pouco vivi com meu pai, razão pela qual valorizo o fato de ser padrasto. Pai, enteado e esposa são família também e não há lei que diga o contrário. A psicanálise afirma que as estruturas do inconsciente são forjadas por papéis de indivíduos que ocupam as funções de pai, mãe e filho. É cultura, não natureza.

A psicanalista Elisabeth Roudinesco afirma, em A Família em Desordem (Zahar, 2003), que a família não se dissolveu, mas se reorganizou de forma horizontal e em redes, garantindo a reprodução das gerações, o casamento perdeu o ornamento da sacralidade e a existência de filhos do casamento ou enteados não faz diferença alguma: agora, ao contrário, filhos são frequentemente concebidos fora dos laços matrimoniais e esse quadro, que aterrorizou os conservadores, mostra-se com naturalidade e comprova que a civilização não foi engolida por essas “desordens”.

Muito me orgulho do padrasto que sou e do filho que ajudei a criar. Com limites e possibilidades, você se recorda de cada dia em que deu Nescau, levou ao médico, da formatura, do primeiro emprego, do temor pelas noitadas etc. É claro que, com a geração internet, se reduz o contato, mas ainda há o simples fato de que você está ali para o que der e vier e o enteado sabe que pode contar com o padrasto. É isso que importa. A autoridade paternal/padrastal é compartilhada e, neste mundo, importam muito mais os direitos conquistados pelos filhos/enteados. As famílias são simplesmente diferentes.
*Doutor em Educação


29 de setembro de 2015 | N° 18309 
DAVID COIMBRA

Coisas que só Porto Alegre faz


Qualquer coisa nem sempre é melhor do que nada. Às vezes, é bem pior. Estou falando do polêmico projeto do Cais Mauá, onde hoje nada existe e do que, dizem os críticos, querem fazer qualquer coisa.

Essas pessoas que são contra o projeto gozam de alguma relevância na cidade. São intelectuais e arquitetos. Mas também há intelectuais e arquitetos a favor do projeto. O que a princípio é bom, porque todos parecem querer debater para o bem de Porto Alegre.

O problema é que muito debate, em geral, não leva a ação alguma. E, quando leva, produz mediocridades. Não há como ser diferente: tudo que é feito “pela média” fica distante da excelência. A excelência está lá em cima, fora do alcance da imaginação comum.

As reformas decisivas nas grandes cidades do mundo foram feitas com autoritarismo, ao largo da média. A mais importante delas, a do Barão Haussmann, prefeito de Paris por quase 20 anos no Segundo Império. Haussmann redesenhou uma cidade que tinha traçado medieval e que se refocilava na insalubridade. Alargou avenidas, saneou bairros, transformou Paris no que Paris é. A esquerda o criticava, porque ele teria aberto os espaços na área central da cidade para evitar as barricadas populares que se repetiam havia 20 anos e porque, com as demolições, os pobres foram expulsos para a periferia.

Tudo isso é verdade, mas Haussmann transformou Paris no que Hitler chamaria de “a mais bela joia da Europa”, além de ter fundado o modelo em que se inspiraram Buenos Aires, Nova York e Rio de Janeiro, entre outras cidades.

No caso do Rio, o nosso Haussmann foi o prefeito Pereira Passos, que também remodelou a cidade e que também destruiu os cortiços (vide Aluísio de Azevedo), fazendo com que os ex-escravos que lá moravam se mudassem para os altos de um morro em que crescia uma erva chamada “favela”. Assim o Rio se tornou a cidade maravilhosa e assim foi criada uma nova palavra para a língua portuguesa.

Se no Rio e em Paris fossem travados os debates democráticos usuais em Porto Alegre, não haveria Cidade Maravilhosa nem Cidade Luz. Não haveria nada.

O debate, então, é ruim?

Claro que não. É bom, se feito com boa vontade. É bom, se as partes envolvidas não pretenderem derrotar uma à outra, e sim chegar a um denominador comum que construa algo, que chegue a algum lugar, que saia do nada.

Tenho passado certo tempo a me informar sobre esse projeto do Cais Mauá. Tem seus defeitos e tem suas qualidades. Não é tão ruim quanto alegam seus opositores e tampouco é o ideal.

Mas será que conseguiríamos alcançar o ideal? Porto Alegre não é uma cidade rica. Um investimento de R$ 500 milhões em obras de reforma, a criação de uma nova área de convivência e a geração de milhares de empregos são melhorias evidentes, que não podem ser desprezadas pela exigência do ideal ou da perfeição. Até porque quem mais ganha com isso é quem menos tem.

Uma democracia tem de ser transparente, uma democracia evolui através do debate, mas uma democracia também tem regras. Há pessoas eleitas, numa democracia, exatamente para tomar decisões e, às vezes, para desagradar a alguns, ou muitos, em benefício da maioria. 

Tomara que o candente debate sobre o Cais Mauá não se transforme, como quase todos os debates porto-alegrenses, em um debate amargo, em uma discussão de inimigos, em uma ação na aparência democrática, mas na essência destrutiva. Tomara que esse debate faça com que a cidade saia do nada. Não em direção a qualquer coisa: em direção a alguma coisa melhor.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015



28 de setembro de 2015 | N° 18308 
CÍNTIA MOSCOVICH

A ALMA FALA


Existem aquelas pessoas que têm um sentimento de mundo tão grande que ultrapassa tudo o que podem (e o que nem podem) fazer pelos seus e por aqueles que nem conhecem. É gente que acha pouco ter só duas mãos e que pensa que coração e fogo ainda não bastam para a sanha dos dias. É assim, para preencher essa falta inquieta, que começam a escrever. E fazem poesia, uma poesia que representa esse peso dolorido que suportam sobre os ombros e na qual expressam sua natureza quase transcendente de tão dedicada.

Themis Groisman Lopes é uma dessas raras criaturas. Médica psiquiatra, poeta e cronista, colaboradora de Zero Hora, Themis é movida por sentimentos de justiça e de pura solidariedade com seus pares humanos (e os de quatro patas), este senso que ela tão bem expressa em sua própria forma de agir e de se relacionar com todos, familiares, amigos, estranhos – e, muito melhor, em sua poesia.

Pois no próximo sábado, 3 de outubro, a partir das 17h, na Livraria Bamboletras, ali no centro comercial Nova Olaria, Themis lança Quando a Alma Fala, (Buqui), obra em que ela expressa suas inquietações com esse profundo sentir da vida.

Nesse novo livro, a autora reune 90 poemas inéditos, escritos de forma praticamente intuitiva, com aquele saber que antecede a própria razão e que, como diz o título, vem da alma. Inocente da versificação ou métrica rígidas, Themis mostra uma poesia plena de afetos, que aborda com delicadeza e realidade os eventos comuns a todos – lembrando, inclusive a morte de dois ídolos gaúchos, Nico Nicolaiewsky, o Maestro Pletskaya do musical Tangos & Tragédias, e Fernandão, o líder precocemente falecido da torcida colorada.

Sem a propensão a menos fazer o que quer que seja, lidando com a tradição dos românticos, os versos de Themis conseguem ser, a um só tempo, delicados e incisivos, líricos e dinâmicos, eróticos e reservados. Às vésperas de nossa Feira do Livro, a autora entrega aos leitores um livro de estrutura graciosa, com um olhar de vivo interesse pelo mundo e pelas pessoas, o que sempre vai ser o melhor que um ser humano pode fazer pelo outro.



28 de setembro de 2015 | N° 18308 
MARCELO CARNEIRO DA CUNHA

QUANDO DÁ ERRADO


Desde sempre o pessoal tenta tirar o máximo de cada história que dá certo. Nas séries, acontece o fenômeno dos spin-offs, as séries que dão origem a séries. Algumas dão supercerto, e eu incluo dentro deste universo a primorosa Better Call Saul e Fear the Walking Dead. Mas há as que afundam, e eu colocaria nesse grupo a estranha The Bastard Executioner e a zumbiana Z.Nation.

The Bastard Executioner é um outro jeito de tentar dizer Game of Thrones, me parece. O cenário é medieval, com o País de Gales de cenário, um teco mais realista do que Westeros, mas não muito. O linguajar é estranho, todo mundo fala como se tivesse engolido Ham­let no café da manhã, e o efeito é pesado, até mesmo porque nem Hamlet é Hamlet o tempo inteiro. Sangue espirra, sexo é brutal, temos bruxas, ou algo assim, tortura, e os demais elementos que tornavam a Idade Média tão agradável. Mas a história se arrasta pelos pântanos gauleses, afundando de tempos em tempos. Em bom facebuquês, je n´est curti pas.

Já Z.Nation começou com um filme e virou série, claramente para aproveitar do efeito The Walking Dead. O que parece esquisito? Os zumbis são rápidos demais. Eles viram zumbis e se movem na velocidade de antílopes, tão rapidamente que nenhum humano duraria mais de meia hora no bravo novo mundo zumbi. The Walking Dead funciona porque os zumbis se deslocam com a velocidade média do trânsito de São Paulo. 

Dá pra fugir numa boa, até de ônibus. Eles são lentos, mas constantes, e por isso pegam humanos distraídos de tempos em tempos. Mas não se movem na velocidade da luz, como em Z.Nation, e, por isso mesmo, funcionam.

Séries derivadas de séries existem e vão seguir existindo. Umas vão funcionar e outras não. The Bastard e Z.Nation não funcionam, mas isso não deve nos desanimar. Muitas vão funcionar, e aí está, no final, a beleza da coisa.

28 de setembro de 2015 | N° 18308 
DAVID COIMBRA

Tenho medo de Lula


Sou dos que sentem medo da possibilidade de Lula voltar à Presidência. Admito. Seria horrível e, sim, pode acontecer. Coisas horríveis acontecem. Mais quatro anos andando para trás. Mais quatro anos de atraso. O Brasil vai demorar muito tempo para se recuperar desses governos petistas. Se se recuperar. O PT, com seu discurso de “Elite Branca x Pobres Pretos”, conseguiu instaurar no país um clima de animosidade irracional que não será desfeito tão facilmente. E o pior é que a disputa não é entre a Elite Branca e os Pobres Pretos. A disputa é bem mais rasa, entre governistas e antigovernistas. Não é disputa por ideologia. É por poder.

Lula gosta de se comparar a Getúlio, e ele tem razão. Ambos foram responsáveis por rompimentos do natural processo evolutivo da democracia brasileira. Getúlio deu um golpe num processo democrático regular que vinha desde Floriano Peixoto. Cada vez que escrevo isso, os getulistas modernos, que (assombrosamente) os há, gritam que na época havia fraude eleitoral e que a política “café com leite” revezava as elites paulista e mineira no poder. 

É verdade. Nenhuma democracia nasce pronta. Nenhuma democracia talvez nunca fique pronta. Prontas são as ditaduras. As democracias vão se aperfeiçoando com o exercício democrático, que não é só exercício do voto, é o exercício da convivência das diferenças.

É por isso que o impeachment de Dilma, se aprovado, será um golpe. Porque ainda não há provas provadas, sólidas o bastante, contra ela. Arranjem provas primeiro, para depois derrubá-la, se for o caso.

Aliás, quanto a isso, há um elogio que deve ser feito a Dilma: seu comportamento é absolutamente respeitoso com a democracia. Por mais acuada, por mais agredida, por mais ameaçada que esteja, ela nunca deu uma única declaração que arranhasse a normalidade da regra democrática, como Lula faz amiúde.

Natural. Lula está muito mais comprometido com o projeto de poder do seu grupo do que Dilma. Afinal, o grupo é DELE. Ele é o capo de tutti capi. Foi nessa condição que Lula golpeou a democracia brasileira, embora de forma muito menos contundente do que Getúlio.

O método foi quase o mesmo.

Externamente, Getúlio se associou aos ditadores da época, como Perón. Tentou até se consorciar a Hitler e Mussolini, mas foi dissuadido pelos dólares americanos. Já Lula se associou aos cubanos, à Venezuela, à Argentina.

Internamente, Getúlio fundou o peleguismo sindical. Que é um dos pontos de apoio de Lula.

Lula conseguiu chegar ao poder pelo voto, como Getúlio em 1950. Lula começou bem, com a ampliação do Bolsa Família e a manutenção da política econômica estabelecida pelo Plano Real. A impressão era de que o Brasil havia entrado num caminho de melhora sistemática e de possível solução de seus dramas históricos.

Aí se deu a traição. Nesse momento. Um presidente operário, simpático à população, com prestígio em todo o mundo, comandando um país com economia em ascensão, com uma indústria diversificada e uma agricultura poderosa, esse presidente e esse país podiam empreender as difíceis e necessárias reformas da escola pública, dos sistemas federativo, tributário, previdenciário e penal, poderiam, com muito esforço e pouco sacrifício, construir uma nação.

Mas Lula tinha o seu projeto particular. Tinha o seu grupo. Foi a eles que Lula dedicou seu empenho. E o Brasil ficou para trás. Esse tempo perdido não será recuperado sem dor. O Brasil perdeu muito por causa de Lula. E o pior nem foram as perdas na economia e na política. O pior foi a perda de esperança.

Sim, tenho medo de Lula. Não, não quero que ele volte. Nunca mais.



28 de setembro de 2015 | N° 18308 
MOISÉS MENDES

Novas para Pablo


Esta semana, vou visitar Sant’Ana no Hospital Moinhos de Vento, com o compromisso de levar as novidades. Pablo deve sair logo do hospital. Mas ficou um bom tempo no CTI e vem se atualizando aos poucos.

Ele gosta de informações dadas por jornalistas. Fiz uma lista de assuntos que poderemos debater no Moinhos com quem estiver por perto. O quarto do Sant’Ana é uma permanente convenção de médicos, enfermeiros, visitantes e até pacientes de outras alas e de outros hospitais. Eis algumas das novas que levarei:

Em um minuto, o time do Grêmio troca 54 passes sem errar, algo nunca visto antes. Mas os centroavantes nunca fazem gols, nem em treinos. Roger vai pedir que as regras passem a prever pontos para a troca de passes.

Fernando Henrique pediu a renúncia de Dilma. Seria o único jeito de Aécio chegar ao poder. Parece uma notícia velha, mas não é. Ele pediu de novo na semana passada. E vai pedir na semana que vem.

O dólar passou de R$ 4. O movimento de viagens de brasileiros para Miami caiu 24% neste ano. Para a Suíça, onde José Maria Marin está preso, caiu 96%.

O parlamento da Bolívia mudou a Constituição, e Evo Morales pode ser reeleito pela terceira vez. A comissão que investigou a compra de votos para a mudança da Constituição brasileira, que permitiu a reeleição de FH, está sendo enviada a La Paz para ajudar nas sindicâncias bolivianas.

Lobão anunciou que Fábio Júnior passa a liderar o movimento pró-golpe em Nova York, do terceiro andar da loja Macy’s. Diogo Mainardi vai liderar de dentro de uma gôndola em Veneza. E José Maria Marin de dentro da cadeia em Zurique.

A Operação Lava-Jato já tem 21 delatores. Todos soltos. Já há falta de tornozeleiras. Pedro Barusco delatou 124 comparsas. Mas até agora não disse de quem é o dinheiro.

Marcelo Grohe é um dos goleiros da Seleção. Tiago, o reserva dele, não sabe sair do gol e, quando sai, não sabe voltar.

De uma pesquisa da USP: o gado que come erva-mate misturada à ração produz carne mais saborosa e macia. E se descobrirem que a carne uruguaia é a melhor do mundo porque os bois deles comem maconha?


28 de setembro de 2015 | N° 18308 
L. F. VERISSIMO

Meu Fusca


Se entendi bem, carros movidos a diesel da Volkswagen eram equipados com um computador mentiroso. Quando o carro era testado para se saber se estava poluindo o ar ou não, o computador dizia “Nein!”, até com um certo tom de ultrajado. Usados normalmente, longe da inspeção, os carros envenenavam o ambiente à vontade, abençoados pelo computador. Que, além de salafrário, era inteligente. Sabia quando era teste, e ele deveria mentir, e quando não era. Não me pergunte como.

Que mundo é este, em que não se pode confiar mais nem na engenharia alemã? Me lembrei, com carinho, do meu primeiro carro, um Fusca cor de chocolate. Podia-se dizer tudo sobre o Fusca – um dos seus apelidos era Cascudo Maldito – menos que não fosse honesto. Ele era desprovido de qualquer ornamento supérfluo, o que significava que custava pouco. Havia algo de sério e confiável na sua simplicidade, e era fácil mantê-lo e estacioná-lo. 

E ele nos serviu com segurança durante muito tempo. Uma vez fomos de Fusca de Porto Alegre ao Rio, com as duas meninas pequenas e a Lucia grávida. O único percalço no caminho não foi culpa dele, foi minha. Calculei mal, e a gasolina acabou no meio da estrada, a poucos quilômetros de Lages, em Santa Catarina. Tive que ir a pé procurar um posto, no escuro. Quando voltei para o carro com um balde de gasolina ele, sempre amigo, não fez nenhum comentário sobre minha falha.

Aventura mesmo, nesta e em outras viagens de carro que fizemos ao Rio, era atravessar São Paulo. Naquele tempo, a sinalização dentro da cidade era escassa, avançava-se na direção do centro e – com sorte – de um hotel barato, confiando na intuição, e na bússola interior que sempre acaba, de um jeito ou de outro, ajudando os desorientados do mundo. Outro problema era sair do centro na manhã seguinte e encontrar a saída de São Paulo para o Rio. Também nesses casos, nunca me faltou a compreensão do Fusca.

Estou falando do Fusca porque, de certa forma, ele simbolizou uma reconciliação mundial com a Volkswagen, cujo passado não a recomendava. O cascudo simpático desculpava a sua participação na máquina de guerra nazista, e o sucesso das suas outras marcas significou o perdão pela sua cumplicidade no terror e o reconhecimento da sua competência. Agora, a Volkswagen está tendo que pedir desculpas de novo. Quanto ao nosso Fusca cor de chocolate, tenho certeza de que ele nunca aceitaria fazer parte da fraude.

sábado, 26 de setembro de 2015

Buenas E M'Espalho - Guri De Campo

Cristiano Quevedo  - Bem Na Porteira

 


Cristiano Quevedo  - Contraponto




27 de setembro de 2015 | N° 18307 
MARTHA MEDEIROS

A tarde é a nova noite

Qualquer local pode ser não apenas noturno, mas diurno também, sem perda de charme: todos brindam, dançam, se divertem e voltam cedo pra casa

Estava folheando uma revista quando vi uma pequena nota sobre a inauguração de um bar em São Paulo que tem seu ápice de frequência durante o almoço e nas horas seguintes. O título da nota era: A tarde é a nova noite. Juntei as palmas das mãos, fechei os olhos e agradeci as preces atendidas.

O proprietário do bar, instalado na cobertura de um prédio, alega que a noite de São Paulo ficou tão grande que começou a ocupar o dia também. Porto Alegre não tem uma noite assim tão grande e, na minha modesta opinião, não precisa esperar para ter, pode adotar essa moda agora mesmo e ser moderna hoje, já, imediatamente. A tarde é a nova noite. Meu mantra.

Nos últimos meses, fui a uma festa de casamento de dia, a um show de comemoração de um site de dia e a um lançamento de uma revista numa casa noturna – de dia. Chamei de casa noturna por hábito: qualquer local pode ser não apenas noturno, mas diurno também, sem perda de charme. Todos brindam, dançam, se divertem e voltam cedo pra casa. Chego a me emocionar com tamanha civilidade.

A tarde é a nova noite. E não precisa ser de tardezinha. Pode ser início da tarde, meio da tarde, pode ser tarde só no nome, pois que cedo.

A vida acontecendo à luz do dia. Consequência saudável de um mundo evoluído, em que as pessoas, por trabalharem online, podem ser produtivas a qualquer hora, em qualquer lugar, sem necessidade de cumprirem expediente rígido e formal, liberando-se, assim, das quatro paredes do ambiente corporativo. Sei que isso ainda é para poucos, que a maioria das pessoas possui empregos inflexíveis, mas não custa sonhar que o padrão de poucos se tornará em breve o padrão de todos, que as pessoas possam trabalhar em horários alternativos e ter disponibilidade para encontrar sua turma para celebrar, gargalhar e prestigiar os espaços de lazer da cidade ainda sob céu claro.

Se isso for utópico demais, que esses encontros com luz natural aconteçam então nos fins de semana apenas, aos sábados e domingos, mas sempre aproveitando o dia (carpe diem!) de dia mesmo.

Estou advogando em causa própria, claro. Assumidamente uma cinderela urbana, é com muito custo que atravesso os ponteiros da meia-noite sem virar abóbora. Logo, prezo tudo que é solar. Entendo que o dia se presta para os esportes, os parques, os sucos, mas acredito que também podemos ter festas e baladas à tarde, sem prejuízo àquelas que não resistem a um paetê – há muito tempo que o brilho virou item fashion ao ar livre também.

A tarde é a nova noite. Eis aí uma tendência original, descolada e livre de ressaca na manhã seguinte. Que a moda pegue – e não largue.



27 de setembro de 2015 | N° 18307 
CARPINEJAR

A alegria veste a tristeza


Tenho uma predileção por uma frase de Federico Fellini: para a sombra existir, o sol deve estar a pique na cabeça.

Sem a luz, o escuro não se forma. Sem o escuro, a luz não tem sentido.

O mesmo acontece com a alegria.

Dentro da alegria mais genuína, mais intensa, mora a sombra da tristeza. A tristeza só existe em função da alegria. É o medo de perder a felicidade que faz com que você se esforce para mantê-la.

Não há alegria inteira, nem tristeza pura, uma depende da outra. Podemos transpirar euforia, mas sobreviverá uma pontinha de melancolia lá no fundo de nosso riso. Porque mantemos a consciência de que a alegria, por mais duradoura que seja, vai passar. Que ela logo se transformará em nostalgia, e que não estaremos mais plenos como daquele jeito de novo – e isso não é ruim e nem é bom, é inevitável da experiência. A tristeza dentro da alegria nos permite pensar e entender o quanto aquele momento é importante e que precisamos aproveitá-lo enquanto dura.

A alegria é esta vontade de ser para sempre que termina. A tristeza vem nos consolar a aceitar que o fim de uma lembrança não significa o fim de nossa vida.

De igual forma, dentro da tristeza mais severa, da depressão mais aguda, é possível notar a presença de uma alegria discreta, retraída, tímida. Tudo pode soar péssimo, mas um abraço, um quindim, um filme, o telefonema insistente de um amigo é capaz de nos devolver a vontade de dar a volta por cima. A simplicidade é terapêutica, a banalidade nos cura dos grandes males da solidão. Haverá sempre o sol por detrás das nuvens escuras dos pensamentos suicidas. 

Na sombra mais espessa de nosso temperamento, coexistem os raios solares minúsculos do contentamento, das dádivas da rotina e dos pequenos prazeres. Estaremos desolados com o tempo fechado e chuvoso do rosto, não enxergando nenhuma saída, mas a alegria se conservará perto e nos mostrará que a tristeza também passará, que é uma fase e um ciclo para absorver separações, desentendimentos e traumas. A lágrima brilhará como uma vidraça limpa e iluminada.

Se a tristeza é saudade dentro da alegria, a alegria é esperança dentro da tristeza. Nenhum sentimento é definitivo e completo.

A luz veste a sombra, a sombra veste a luz. A alegria costura a tristeza, a tristeza costura a alegria. Alfaiates que se revezam no longo pano dos dias.


27 de setembro de 2015 | N° 18307 
ANTONIO PRATA

Encontrei Madalena

“Fui passear na roça/Encontrei Madalena/Sentada numa pedra/ comendo farinha seca”. Não foi passeando na roça que encontrei Madalena, mas parado na Doutor Arnaldo, às seis e meia da tarde, ouvindo rádio. A Madalena do rádio me levou a outra, numa sala de aula, em 1985. Não me lembrava dela havia anos, agora quase consigo vê-la na mesa ao lado, na nossa primeira série: o cabelo preto, comprido e cacheado, a pele morena, lábios grossos, uma pequena Sônia Braga de Melissinha, Bic dez cores e estojo coreano.

Falando assim, até parece que eu era apaixonado pela Madalena. Não era. Embora ela me apareça linda, na memória, em 1985 todos a achávamos feia. No colégio que estudávamos, no Morumbi, os modelos de beleza eram a Xuxa e as Paquitas – entre as commodities mais valorizadas na bolsa do primário não estava, como se vê, a melanina. O próprio nome Madalena, penso, destoava das Patrícias, Vanessas e Sofias que admirávamos. Madalena, com seus “as” abertos e consoantes molengas, está para sandália rasteirinha assim como Patrícia, Vanessa e Sofia estão, com suas consoantes pontiagudas, para botas de Paquita.

O trânsito anda, para, a música segue, “entra em beco, sai em beco” e caio numa divagação meio Oliver Sacks: engraçado que a imagem daquela menina, mesmo encaixotada em meus arquivos com o carimbo “FEIA”, não tenha sido deformada pelo juízo de valor. Mudado o meu entorno, mudada minha visão de mundo, a desencaixoto, hoje, e a descubro bonita, por trás do rótulo.

Será? Será mesmo que a imagem não foi deformada? Quem me garante que o presente não tenha embelezado a garota de acordo com meus valores atuais? Pra começo de conversa, a memória foi atiçada pela música. A Madalena de 1985 se misturou à do Gil. Vejo minha colega de infância sentada numa pedra, na primeira serie, de vestido de chita, sorriso brejeiro, como num clipe – reparo que se parece muito com a Camila Pitanga.

Vendo essa Madalena Pitanga, percebo que a melanina está em alta na minha Bovespa pessoal. Será que me livrei de parte dos preconceitos de menino branco, paulista, de colégio particular? Ou a beleza da Madalena é uma espécie de ação – ou reação – afirmativa do meu senso estético, diante dos horrores atuais? O Apartheid praiano, no Rio, as chacinas da PM, em São Paulo, o governo se esfacelando, emporcalhando qualquer bandeira que soe remotamente de esquerda, Que Horas Ela Volta? indo e vindo na minha cabeça: aí a memória encontra a menina morena no meio das Paquitas, Galvão Bueno grita, lá do fundo do meu córtex, “Madalena é Brasiiiil!”, preciso ter esperança no Brasil, um mínimo de otimismo pra continuar saindo da cama, todo dia, pronto, Madalena surge, graciosa, bela, cravo e canela, às seis e meia da tarde, num cruzamento dos meus neurônios.

O trânsito anda, para. “Entra em beco, sai em beco”. O Waze fica recalculando e avisando que estamos cada vez mais longe do nosso destino. Tá tudo travado, tudo zoado. Penso nos comentários que esta crônica irá gerar. Vão me chamar de petista? De machista? De racista? Todo mundo buzina e ninguém ouve nada. A gente devia voltar pra 1985 e recomeçar, do zero. Eu não daria a menor bola pras Patrícias, Vanessas e Sofias, só teria olhos para a Madalena – se é que, algum dia, estudei mesmo com uma Madalena.



27 de setembro de 2015 | N° 18307
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Quatro fatos e uma pergunta


Dotado de uma importante rede de universidades, com décadas de atuação intelectual, com pesquisas, publicações, simpósios, etc., o Rio Grande do Sul não tem produzido – ou não tem trazido a público – interpretações sobre o Brasil. Talvez eu esteja cometendo injustiças, mas só vejo duas figuras gaúchas com demonstrada capacidade de apresentar de público leituras de conjunto sobre o país. 

O primeiro foi Vianna Moog (1906 – 1988), com obras como Bandeirantes e Pioneiros, em que desenhou um contraste entre a colonização do Brasil e aquela dos Estados Unidos. O segundo foi Raymundo Faoro (1925 – 2003), autor de Os Donos do Poder, ensaio de interpretação sobre a formação do Estado brasileiro, apropriado desde sempre pelos grupos que sucessivamente chegaram ao poder e dele passaram a se servir como se ele fosse coisa privada.

Por que só eles?

Não estou desconsiderando escritores que alcançaram forte público nacional, como Erico Verissimo, Moacyr Scliar ou Caio Fernando Abreu, para citar de novo apenas gente já ausente; nem estou esquecendo intelectuais de importância, como Moysés Vellinho ou Décio Freitas. O certo é que, salvo os dois antes mencionados, não produzimos aqui interpretações gerais do país, nem em ficção. Por quê?

2 Com todas as suas limitações históricas, por sinal raras vezes iluminadas com ênfase, a experiência história da República do Piratini teve o inegável valor de ser, bem, republicana, numa conjuntura histórica em que estava em jogo o futuro da monarquia no Brasil. Houve uma guerra, sustentada por longos anos; no centro político do conflito estava uma reivindicação de maior autonomia, negada às províncias pelo poder central daquela jovem nação (a Independência aconteceu meros 13 anos antes da eclosão da guerra sulina) como antes havia sido negada à colônia portuguesa pela metrópole. 

O desfecho da guerra foi um arranjo à moda brasileira, não à moda platina: na Argentina e no Uruguai, os derrotados vão para o exílio curar as feridas (e eventualmente pensar no assunto, como ocorreu com Sarmiento, que lá escreveu um clássico de seu país, o Facundo), mas no Brasil as elites sempre dão um jeito de comporem as coisas, excluindo os de sempre, índios e negros especialmente. Conciliação pelo alto, como se dizia: perdão total do Imperador aos rebeldes, ratificação de seus atos durante a República, etc.

Terá tido esse desfecho algum papel, a longo prazo, na ausência de pensamento crítico sobre o conjunto da nação brasileira? A guerra separatista e essa paz conciliadora terão exercido sobre as elites intelectuais algum poder limitante, obrigando-as a tarefas locais e mesmo localistas, tão somente?

3Como uma espécie torta de compensação, o Rio Grande do Sul há 15 anos é o berço quase exclusivo dos treinadores da Seleção. Desde 2001, passaram pelo cargo Felipão (depois Parreira, carioca), Dunga, Mano Menezes, de novo Felipão e Dunga. Isso sem falar de Tite, treinador do time que agora ponteia o Campeonato Brasileiro e candidato a treinar a Seleção, em seguida.

Por quê?

Políticos de projeção e de projeto realmente nacionais tivemos dois, Getúlio e Brizola, um bem e outro mal sucedido na conquista do poder central. Além deles, quem mais? É certo que na geração de Getúlio havia outros destaques, como Osvaldo Aranha, sem ir mais longe. Mas sempre poucos, e no passado.

4 Curiosamente, o Rio Grande do Sul tem apresentado e desenvolvido impressionantes iniciativas de vocação e timbre cosmopolita. A AGAPAN, começada em 1971, é exemplo de luta ecológica até hoje. O MST tem uma forte raiz na organização dos camponeses do norte gaúcho, nos anos 80. 

O Orçamento Participativo conheceu sua mais complexa realização aqui, desde o final dos anos 80, e dele brotou a invenção do Fórum Social Mundial, que fez Porto Alegre conhecida no mundo todo. O Fórum da Liberdade tem papel importante para os liberais brasileiros. No campo da tecnologia, o Fórum Internacional do Software Livre é referência forte em seu campo.

Mas nenhum deles tem o Brasil como foco, objetivo ou âmbito, propriamente. Por quê?


27 de setembro de 2015 | N° 18307
ARTIGOS - DIANA LICHTENSTEIN CORSO*

PERGUNTAS CONSTRANGEDORAS

Responda rápido: o que temos no meio das pernas? Se você pensou nos órgãos sexuais, errou. Essa pegadinha infantil vem lembrar que às vezes supomos as perguntas mais constrangedoras do que elas realmente são. Isso é porque nossos pensamentos é que são meio travessos. A resposta certa é: os joelhos.

A brincadeira ilustra bem o que ocorre quando as crianças perguntam sobre sexo a seus pais. É uma situação em que elas sabem que os estão colocando em uma posição constrangedora e divertem- se ao vê-los balbuciar. Por isso, antes de começar labirínticas explicações sobre sementinhas, convém descobrir o que exatamente é que elas estão perguntando, pode ser só um joelho.

Elas gostariam de compreender muita coisa, mas somente interrogam sobre aquilo que estão prontas para escutar. Perguntar já é em si um ato de coragem, em geral as explicações são menos assustadoras do que as fantasias que surgem espontaneamente. As fantasias sexuais infantis são compostas a partir de fragmentos de conversas, imagens, enfim, um acervo que a criança está sempre coletando e que a leva, acredite, às conclusões mais disparatadas.

Por esses dias, uma mãe paulista ficou horrorizada quando seu filho de 11 anos, cursando a sexta série, lhe perguntou o que era uma prostituta. A indagação veio a partir de uma leitura recomendada pela escola: uma versão em quadrinhos do clássico Oliver Twist, na qual se recorria a uma linguagem mais contemporânea e própria do gênero. Junto a várias outras famílias, essa senhora participou de um movimento que questionava a direção da escola sobre o tipo condenável de valores que estavam transmitindo.

Mas, afinal, quando devemos falar para uma criança sobre temas que consideramos embaraçosos? A resposta é simples: quando ela perguntar, pois questionar é um signo de confiança em si mesmo e na sinceridade dos pais. Além disso, por que deveríamos lhes negar um desejo de crescer?

Um púbere que tenta falar em casa sobre prostituição está curioso das relações entre amor e sexo e quer saber da posição de sua família a respeito. Ele está entrando em contato com seus próprios desejos, intriga-o como é que isso poderia envolver dinheiro e por que esse é um xingamento tão grave. Mesmo depois de grandes, nossa própria sexualidade persiste enquanto um enigma que morremos sem decifrar. A surdez para a perspicácia dos filhos visa preservar uma fantasia de inocência que é preciosa só para os pais. Manter os filhos numa bolha é o propósito de famílias que tentam viver dentro dela.

A escola está certa. Com Oliver Twist, propõe um debate sobre um menino abandonado frente a uma sociedade hostil, em nada inconveniente para uma sexta série. Já esses pais, talvez não tenham amadurecido para acompanhar o crescimento dos seus filhos.

Diana Corso escreve quinzenalmente neste espaço

*Psicanalista dianamcorso@gmail.com


27 de setembro de 2015 | N° 18307
L.F.VERÍSSIMO

Inconsequência heroica

A impotência das Nações Unidas diante da tragédia dos refugiados no Mediterrâneo é igual a sua incapacidade de resolver a crise permanente do Oriente Médio e evitar as guerras que pipoqueiam pelo mundo. A ONU é, ao mesmo tempo, um monumento aos melhores sentimentos humanos e uma prova de que os bons sentimentos não bastam, portanto um monumento à inconsequência. O fracasso da ONU na sua missão mais importante torna as suas outras utilidades supérfluas. 

Pouca gente sabe tudo que ela faz nos campos da saúde, da agricultura, dos direitos humanos etc., como pouca gente sabia que a Liga das Nações, sua precursora, (1918-1946, ou de um pós-guerra a outro) também promovia cooperação técnica entre nações e programas sociais, além de tentar, inutilmente, manter a paz. A diferença da ONU e da Liga das Nações é que uma sobrevive às frustrações que liquidaram com a outra e tem a adesão dos Estados Unidos. Apesar de o presidente americano durante a I Guerra Mundial, Woodrow Wilson, ser um entusiasta da Liga que, segundo ele, acabaria com todas as guerras, o Congresso americano rejeitou a participação dos Estados Unidos na organização, o que matou Wilson de desgosto. 

O Congresso aprovou a entrada do país na ONU depois da II Guerra, mas a antipatia continuou. O desdém dos Estados Unidos e das outras grandes potências pela ONU ou por qualquer entidade supranacional é uma constante, e a invasão do Iraque foi uma prova recente dessa desfeita. E, no entanto, a ONU já dura mais do que o dobro do que durou a Liga das Nações. Ela também é um monumento à perseverança sem nada que justifique.

Talvez se deva adotar a ONU como símbolo justamente dessa insensata insistência, dessa inconsequência heroica. Com todas as suas contradições e frustrações, ela representa a teimosia da razão em existir num mundo que teima em desmoralizá-la. Pode persistir como uma cidadela do Bem, na falta de palavra menos vaporosa, nem que seja só pra gente fingir que acredita nele, e nela, e em nós. 

Porque a alternativa é a desistência, é aceitar que, incapaz de vencer o desprezo e a prepotência dos que a desacreditam, a ideia de uma comunidade mundial esteja começando a sua segunda agonia. A Liga das Nações agonizou durante quase 30 sangrentos anos até morrer de irrelevância. A ONU só terá levado mais tempo para se convencer da sua própria impossibilidade.


RUTH DE AQUINO
25/09/2015 - 22h37 - Atualizado 25/09/2015 22h37

A guerra da praia

Como o problema não é de ninguém, surgiram lutadores dispostos a “quebrar os marginais”


Há furtos, roubos e assaltos em todas as grandes cidades do mundo. Mas só no Rio de Janeiro existe o arrastão de praia. Só na Cidade Maravilhosa um carioca, brasileiro ou estrangeiro é assaltado por uma turba violenta naquele momento em que se bronzeia na areia, brinca de baldinho com o filho, toma água de coco com amigos ou passeia no calçadão, extasiado com a vista do mar e das montanhas.

Nos metrôs de Paris, Londres e Barcelona, alto-falantes alertam para os pick-pockets nos trens e plataformas. São adolescentes, exímios ladrões de celulares e carteiras. Você só percebe o roubo tempos depois. Perdeu, otário. Você é turista e isso está escrito em sua testa. Os bandos de ladrões costumam ser de imigrantes, ou filhos e netos de imigrantes. Muitos árabes, negros ou mestiços. Têm benefícios do Estado social. Mas são pobres. Moram na periferia.

Quais as maiores diferenças? Na Europa, a maioria age com discrição e sem armas. No Rio, é o inverso: agem com ostentação e com canivetes, paus, pedras, porretes, armas de fogo. Uma turista inglesa, vítima dos arrastões no Rio 40 graus, disse aos prantos: “É o fim das minhas férias. Tinha fotos, filmes. Todas as nossas memórias foram roubadas. Eles bateram no meu irmão. Foi horrível. Nunca mais quero voltar”. Darling, meu celular com fotos e filmes já foi roubado em Londres. E continuo voltando. Mas eu compreendo você.

Porque o problema, no Rio, é a violência e a dimensão. Bateram no irmão da turista na frente dela. Aí é duro. É duro ver ao vivo, na praia, hordas de assaltantes, a maioria menores, perseguindo e espancando vítimas, como urubus atacando carniça, às gargalhadas, sem repressão. Você está desarmado duplamente, praticamente nu, de sunga ou biquíni, o espírito leve. Curte o lazer mais sagrado do Rio. E, de repente, é atacado. Protege os filhos com os braços. Não pode gritar ou reagir porque se arrisca a perder a vida.

A gurizada chega à praia tocando o terror, na linha de ônibus 474, apelidada de quatro-sete-crack. Não paga a passagem, pula a catraca, assalta pedestres nos pontos, constrange as moças, rouba de passageiros pobres como eles, fuma, vandaliza, debocha, grita, toca funk com apologia às drogas. Enfim. Eles zoam. Sem medo de nada. Estão protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e por juízes que impedem revistas policiais em ônibus ou detenção de suspeitos fora de flagrante.

O Rio é talvez a cidade brasileira que mais mistura pobres e ricos, negros e brancos, geograficamente. É uma cidade em que a cultura negra é historicamente valorizada. Tinha tudo para não ser tão dividida, se o poder público cumprisse seu papel. O fracasso retumbante e histórico de governadores e prefeitos em relação à urbanização das favelas e à educação dos carentes contribui para o ódio social que hoje toma as ruas.

O prefeito Eduardo Paes diz que o problema é policial e não social: “Não pode chamar jovem que sobe em teto de ônibus de vulnerável. É delinquente”. O secretário de Segurança José Mariano Beltrame diz que o problema é social e jurídico e não policial. Os juízes dizem que o problema não é deles, porque só se pode deter alguém em flagrante. Como o problema não é de ninguém, surgiram os justiceiros, lutadores dispostos a “quebrar os marginais”.

As redes sociais destilaram todo tipo de preconceito. Racista e social. Preconceito contra negros. Contra brancos. Contra favelados. E contra moradores de Copacabana e Ipanema. Quem rouba iPhone não passa de um injustiçado? Quem tem iPhone é “playboy” e merece ser roubado?

O bancário Jerônimo Oliveira veio de Rio das Ostras para visitar a família no Rio. Foi cercado, agredido e roubado no calçadão. “Senti puxarem meu cordão. Virei para trás e fui derrubado. Eram mais de dez em cima de mim, me batendo e enfiando as mãos nos meus bolsos.” É esse o principal espaço democrático do Rio?

Para evitar uma “tragédia maior” ou um “linchamento”, Beltrame anunciou que praia agora será tratada como “grande evento” na Segurança. Homens dos Batalhões de Choque circularão na orla em trajes de praia. Assistentes sociais acompanharão policiais nas revistas a ônibus. A PM montará duas grandes tendas nas areias e torres de observação. Terá apoio de comandos móveis, quadriciclos, câmeras em helicópteros.

Para repelir os justiceiros, um coletivo convocou um “farofaço” na Praia de Ipanema. Em vez de paus, pedras e facas, todos devem levar “frango, farofa, refrigerante, douradores de pelo corporal, isopores, piscina pro pagodão no fim da tarde, e um radinho pro pancadão!!!”. A propaganda diz: “O bagulho é curtir uma praia bolada em um domingão”.

Não sei qual é seu bagulho, mas desejo feliz domingão a todos.


26 de setembro de 2015 | N° 18306
ARTIGOS -  LEANDRO DE LEMOS*

CHEGAMOS AO FIM?

A conjuntura econômica brasileira apresenta o mais intenso e complexo somatório de negativos desempenhos das últimas décadas. A pergunta que nós, economistas, mais recebemos é: quando será o fim deste processo de crise e quando se inicia a retomada do crescimento? 

Já passamos por outras crises nos últimos 50 anos. Mas a complexidade da atual é mais profunda. Somando-se o fato de que a sociedade brasileira ainda não conhece seu real tamanho e o caminho para sair dela.

Nos anos 1980, por exemplo, tínhamos um processo de superinflação crônica com baixo crescimento. A solução advinda lá no Plano Real foi gestada e debatida durante muitos anos e experimentada – dentro dos mesmos preceitos econômicos – em planos anteriores, como o Cruzado, o Bresser, o Verão e outros, até acertarmos. 

No entanto, mesmo depois do Real, não resolvemos o problema do baixo crescimento do PIB e os problemas estruturais foram encobertos com mais gasto público desde 1994 até agora. O enfraquecimento do debate sobre o desenvolvimento econômico brasileiro deveu-se a um falso dilema – neoliberalismo versus estatismo – que centralizou o palco das atenções de eleitores cada vez mais ávidos por gastos públicos. 

De tal forma que, hoje, todas as classes sociais dependem de “bolsas”, seja para sustentar a competitividade empresarial ou sobrevivência social. Segundo o respeitado economista Raul Veloso, 120 milhões de brasileiros dependem de benefícios diretos do Estado. Exatamente aí reside a principal necessidade de mudança na qual esses teriam que perder renda e benesses para voltarmos ao equilíbrio. Esse modelo, em crise, é que chegou ao seu fim.

Sua origem está na intensidade frágil do debate e na ausência de construção de propostas. São muitas as reformas a serem aprovadas por um corpo político que se empobreceu em termos de visão e se exilou na armadilha da irracionalidade econômica. Nela, reina a crença de que devemos recuperar a capacidade de gastos públicos para continuar a gastar mais. O fim, portanto, depende de a sociedade superar a negação da morte de um período e passar a construir os caminhos de um novo estágio de desenvolvimento sustentado.

Economista, professor da PUCRS*