terça-feira, 31 de março de 2015


31 de março de 2015 | N° 18118
DAVID COIMBRA

Eu queria ser negro

Eu não queria ser negro. Deve ser difícil, e a vida já é repleta de dificuldades. Mesmo assim, gostaria de escrever A História dos Povos Negros. Seria esse o título do meu livro.

Será que os negros criticariam o livro devido ao fato de o autor ser branco? No Brasil, talvez não. Mario Filho escreveu O Negro no Futebol Brasileiro, um clássico, um dos melhores livros já escritos sobre futebol, sobre negros ou sobre qualquer outra coisa no Brasil, e Mario Filho era branco.

Verdade que os tempos são outros, as suscetibilidades aumentaram, alguém por certo ia reclamar. Deveria escrever?

Se escrevesse, não usaria o termo “afro-americano”. Não gosto, embora reconheça a boa intenção de quem o criou. O inventor do “afro-americano” pensou: não vamos identificar essa pessoa pela cor da pele, e sim por sua origem geográfica. Só que uma pessoa de ascendência egípcia que vivesse nos Estados Unidos ou no Brasil não seria chamada de afro-americana. Seria brasileira ou americana, simplesmente. E o Egito é africano há pelo menos 7 mil anos.

Assim, o “afro-americano”, de alguma forma, acentua o preconceito contra o negro. Porque você está chamando o cara de afro-americano exatamente porque ele é negro, não porque seus avós vieram da África.

Alguém dirá que todos os negros vieram da África. Certo. Só que todos os Homo sapiens vieram da África. Ou seja: todos nós viemos da África, todos somos um pouco negros, até a Scarlett Johansson. Até eu. O que me incentiva a escrever o livro.

O importante é que o negro não foi escravizado por ser africano, e sim por ser negro. Povos árabes africanos, inclusive, escravizavam os negros antes de os europeus o fazerem. E, na África do Sul, os brancos africanos impunham o apartheid aos negros africanos. Quer dizer: africanos que não eram negros escravizavam africanos negros.

Logo, foi a negritude que justificou a escravização desses homens.

Tente entender este que é o maior drama da história humana: um homem é arrancado à força da sua terra e da sua família e é levado para outro continente, onde passará o resto da vida trabalhando como escravo. Isso aconteceu porque sua pele tem a cor negra.
Nesse lugar, há pessoas de várias outras partes do mundo, de várias outras cores de pele, mas essas pessoas estão ali por vontade própria. Os imigrantes ocidentais ou orientais vieram “fazer a América”. Ou conquistá-la. Ou apenas explorá-la. Ou fugir de alguma perseguição. De um jeito ou de outro, vieram porque quiseram. Os negros, não. Os negros vieram agrilhoados em porões de navios. Os negros, portanto, são estrangeiros.

Aí está a maior tragédia. E eu, que não sou negro, ouso afirmar que esse sentimento é maior nos Estados Unidos do que no Brasil. Esse sentimento de não pertencimento, essa exclusão. Não é à toa que os negros americanos se chamam de irmãos.

Esse pensamento me faz admirar ainda mais Barack Obama. A elegante autoridade desse homem. A maneira como ele caminha e se expressa. E seu desempenho como presidente dos Estados Unidos. Todos esses fatores reunidos, aliados à dificuldade intrínseca de ser negro na América, isso eleva Obama a uma altura poucas vezes alcançada por um líder mundial, em qualquer tempo, em qualquer lugar, de qualquer cor.


Fernando Henrique, um presidente intelectual, decepcionou. Lula, um presidente operário, decepcionou. Obama, um presidente negro, foi melhor do que se poderia esperar. Olhe para Obama. Todos queriam ser Obama. E Obama é negro. Eu queria ser negro.

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