29
de março de 2015 | N° 18116
LUÍS
AUGUSTO FISCHER
Intelectuais liberais
gaúchos
“Liberal” quer dizer mais de uma coisa, bem sei, a
depender do contexto da conversa. Décio Freitas, figura que tanta falta faz no
comentário político sutil e profundo, gostava de falar da tradição “iliberal”
no pensamento e na prática política do Rio Grande do Sul, com frutos projetados
para todo o país. Iliberal quer dizer autoritário, pouco amante das liberdades,
alguém capaz de sacrificar a liberdade pela busca da igualdade.
Não
é pouca coisa. Os republicanos gaúchos, ferreamente positivistas em sua
maioria, protagonizaram um período autoritário longo, que eles mesmos pensavam
como “ditadura republicana”, com Júlio de Castilhos e depois com Borges de
Medeiros, que presidiu o Estado por 25 anos, nas três primeiras décadas do
século 20. Entregou o poder ao jovem Getúlio Vargas, que montou no cavalo da
revolução de 30, liderando-a, e permaneceu no poder central por 15 anos
ininterruptos, sem ser eleito por voto direto, e depois retornou, eleito, para
um mandato, que não concluiu porque se matou antes.
Do
braço esquerdo de Getúlio saiu o PTB, que se transformou em PDT depois da volta
de Brizola do exílio, em 1979, partido com marca autoritária, não por ter
protagonizado uma ditadura, pelo contrário, mas pela força enorme dos líderes
sobre a base do partido, e/mas, como ocorrera nos casos de Getúlio e dos
primeiros republicanos, com foco em políticas para os mais pobres, que hoje em
dia chamaríamos de “inclusivas”.
No
período mais recente, o PT, notoriamente afinado com políticas de distribuição
de renda e de “empoderamento” dos de baixo – a palavra é meio tosca, mas designa
bem o fenômeno –, traz em seu DNA algo dessa tradição que o Décio chamava de
iliberal, de pouca tolerância com a iniciativa individual, com as dissidências,
com tudo enfim que desvie das decisões das instâncias superiores.
Paulo
Francis gostava de lembrar que Fidel Castro tinha sido aluno dos jesuítas, os
quais talvez tenham sido o primeiro exemplo moderno de uma instituição que
combinou alta performance política, exigente debate intelectual e
impressionante submissão ao poder central. Lenin aprendeu com a história da
Companhia de Jesus – mas os tempos mudam, tanto que o excelente papa Francisco,
jesuíta com aspecto de franciscano, está onde está, fazendo o que faz.
Essa
longa e imprecisa conversa me ocorre em função de quatro intelectuais gaúchos
de grande valor, todos eles alinhados com uma visada que dá para chamar de
liberal, ao menos em alguns dos sentidos do termo. Ramiro Barcellos, cujo
Antônio Chimango completa este ano um centenário de vida, foi o primeiro – mas
eu poderia ter lembrado antes a figura de Apolinário Porto Alegre, republicano
não-positivista, que aliás foi vilmente atacado pelos autoritários do PRR.
Ramiro foi o mais destacado opositor individual de Borges em seu auge, tendo-se
apresentado à eleição ao Senado em 1915 para ajudar a expor seu adversário.
A
Getúlio, por caminhos diferentes, se opuseram dois grandes escritores gaúchos.
Primeiro Vianna Moog, que já em 32 ficou ao lado dos que cobraram de Getúlio a
eleição que prometera, e foi punido por isso – funcionário federal, foi transferido
para Belém do Pará, um verdadeiro exílio naquela época. No Estado Novo, Erico
Verissimo claramente se colocou contra o que via. Esses dois vieram a viver nos
Estados Unidos por tempos, com base na mesma convicção antiautoritária – ainda
que entre Erico e Moog tenha havido bastante diferença política, Erico se
considerando um socialista democrático, ao passo que Moog esteve próximo dos
vitoriosos de 64.
O
quarto desta série, ou quinto com Apolinário (ou sexto, se desde logo
incluirmos o Décio no rol), é Raymundo Faoro. Criado no Estado, formado em
Direito na UFRGS, ainda relativamente jovem se mudou para o Rio de Janeiro,
onde despontaria, no fim da Ditadura Militar, como presidente da OAB e figura
de destaque na defesa das liberdades elementares que aquele regime negava.
Todos
escreveram, pensaram por escrito, discutiram o Estado brasileiro e as nossas
mazelas. Nenhum deles é um pensador social, mas todos têm o que dizer sobre a
cultura brasileira (e a gaúcha em particular), assim como todos eles, sem
exceção, tinham excelente fluência no trato com a melhor literatura do país –
Moog e Faoro são autores de estudos decisivos sobre Machado de Assis, de quem
Ramiro e Erico (e Décio) eram leitores. Ah, sim, Machado também se filia a esse
grupo imaginário.
Para
perceber isso que acabo de dizer, porém, não basta ser um liberal no sentido
norte-americano do termo.
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