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quarta-feira, 2 de abril de 2008
02 de abril de 2008
N° 15559 - Diana Corso
Filha de criação
Filhos de criação viviam ligados a famílias para quem trabalhavam como empregados, mas não recebiam salário. A acolhida que os livrava da miséria de origem incluía moradia, comida, roupas usadas e, com muita sorte, teriam direito a um colégio noturno e lugar na mesa às refeições. Nem filhos, nem trabalhadores, talvez fosse melhor chamá-los de "criados".
Essa prática seria considerada em vias de extinção, não fosse a revelação de uma versão trágica desse costume: a recente denúncia de uma empresária de Goiânia que submetia uma menina de 12 anos, sua "filha de criação", a torturas e trabalho escravo. Ela afirmou que amarrava, amordaçava e feria a menina para "educá-la".
Essa barbárie toca num nervo exposto da vida de todos: a lembrança da fragilidade da nossa própria infância. As agressões sofridas por essa menina ilustram tragicamente o quanto nos sentíamos indefesos frente ao poder dos adultos que nos criavam e de quem dependíamos. Neles podíamos encontrar o céu ou o inferno.
A mesma memória que embala as lembranças gostosas dos cuidados e mimos que nos dispensavam, tem um outro lado. Esse é o que nos lembra das noites insones e com medo, da raiva inútil que nos carcomia quando éramos punidos ou cerceados, fosse a medida justa ou injusta.
Ser criado por alguém é o contrário de ser seu criado. No primeiro caso, a família é um ninho, um lugar protegido para habitar quando ainda não sabemos voar, no segundo, uma facada pelas costas, uma experiência de escravidão que se suporta em silêncio.
Ora, a confiança básica necessária para ser alguém na vida nasce de uma experiência primordial de proteção: uma criança precisa acreditar nos seus adultos, entregar-se a eles para se desenvolver.
Para tanto, precisa contar com o afeto e o senso de justiça destes, mesmo que de vez em quando sinta raiva deles ou pena de si mesma.
Maltratar uma criança, fazer dela um criado, é imperdoável porque o abuso perpetrado por quem deveria cuidar produz um medo paralisante, uma falha psíquica quase irreversível que estraçalha a personalidade.
Crianças assim desamparadas se calam, permitem que seu algoz torne-se um carrasco perpétuo em suas vidas.
Quem tem um machucado desses, não possui uma identidade própria, portanto não se queixa. O terror produz silêncio e o medo é indispensável para fabricar um escravo. Sou atéia convicta, mas por vezes vacilo, temo que o diabo talvez exista.
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