sexta-feira, 25 de abril de 2008



25 de abril de 2008
N° 15582 - Paulo Sant'ana


A banalização do discurso

O médico e cirurgião transplantador José J. Camargo estará lançando em seguida um livro de crônicas, entre as quais figura esta que escolhi para oferecer a meus leitores:

"A prefeitura de Vacaria fica numa esquina, no canto da praça, em diagonal com a linda catedral de pedra. Numa noite de primavera, uma multidão se acotovelava pelo privilégio de ficar defronte à sacada onde desfilariam os oradores daquele comício. Ainda menino, fui levado pela mão do meu avô para minha primeira experiência de assistir a um discurso em público.

Os alto-falantes vibraram, as pessoas aplaudiam e eu assistia a tudo maravilhado com a vista que meu avô me proporcionava, colocando-me sobre seu ombros.

De repente, um frisson tomou conta de todos, quando se anunciou o discurso de um grande orador que encerraria o comício. Ele entrou na sacada da prefeitura, tirou o chapéu, acenou para todos os que o aplaudiam, e a seguir fez um silêncio estratégico como a dizer que depois disso nenhum ruído seria permitido. Todos entenderam e todos se calaram. Quando ele começou a falar, os pernilongos emudeceram.

Não lembro uma palavra do que ele disse, mas nunca vou esquecer da irreprimível euforia e do doce encantamento que tomou conta de todos, e dos apertos de mão, e dos abraços afetuosos que foram trocados por alguns quase desconhecidos, que precisavam extravasar a incontida exultação.

Quando fui colocado outra vez no chão, percebi com espanto que meu avô chorava. Lembro que fiquei em pânico, porque naquela idade eu ainda não sabia que se podia, sim, chorar por outra coisa que não fosse dor ou perda.

Quando perguntei o que tinha acontecido, ele me respondeu, já meio rindo: Foi pura emoção, meu filho. Vamos embora!.

Devo a Paulo Brossard de Souza Pinto a ventura de ter descoberto, ainda criança, que é possível chorar de emoção. Sempre vou ser grato a ele por esta lição prematura e impagável.

Uma noite dessas, zapeando na TV, parei, como faço muitas vezes, na TV Senado. Que tristeza! A discussão sobre a utilização de células-tronco deveria eletrizar o ambiente, mas ninguém ouvia ninguém.

Pequenos grupelhos mantinham discussões paralelas, alguns caminhavam pelo plenário como a alongar as pernas, outros falavam ao celular de costas para o orador, que, aparentemente conformado com o descrédito, se dirigia exclusiva e insistentemente ao senhor presidente. Cada vez que o coitado alteava a voz para dizer:

E por isso, Sr. Presidente...!, era como se estivesse reforçando o compromisso tácito de que pelo menos ele se mantivesse acordado, ainda que as sacudidas da cabeça parecessem em franco descompasso com o que estava sendo dito pelo resignado orador de causa nenhuma.

Que alguém continue falando sem se importar que ninguém esteja ouvindo sempre me pareceu uma aberração.

Historicamente, os grandes oradores se caracterizaram pela capacidade de calar as multidões, que, silenciosas e constritas, aguardavam cada palavra como uma revelação definitiva.

Os tempo mudaram, tem mais gente falando do que idéias a serem defendidas, mais falastrões do que doutrinas, mais lobistas do que empreendedores.

E enquanto a palavra for disponibilizada aos oradores sem causa, e enquanto os lugares-comuns substituírem a emoção, estaremos em vigília pela dolorosa agonia do discurso.

Mais triste do que calar é seguir falando, sem ter o que dizer!"

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