domingo, 27 de abril de 2008


DANUZA LEÃO

A memória

De algumas coisas da infância é fácil lembrar, ou melhor, impossível esquecer: das comidas, por exemplo

PARA QUE SERVE a memória, afinal? Para lembrar das coisas? Mas de quantas você gostaria de lembrar e esqueceu, de quantas gostaria de esquecer e não consegue?

Para que serve a memória, afinal? Para ser culta, por exemplo. Não adianta ter feito todas as viagens, visto todos os museus, lido todos os livros, visto todos os filmes, se não tiver memória.

Quando falarem sobre aquela obra-prima exposta em um pequeno museu de Amsterdã que você por acaso conheceu, como exibir um conhecimento a que só raras pessoas têm acesso, se não se lembra do nome do museu, do nome do pintor, do nome do quadro?

A memória afetiva, essa sempre fica: mas não dá para telefonar para aquele antigo amor e perguntar "como é mesmo o nome daquele quadro que eu esqueci o nome, daquele pintor de quem me esqueci o nome, que vimos naquele museu de Amsterdã?"

Do que você não se esqueceu foi que naquela noite, pela primeira vez, saíram dali bem abraçadinhos, e o resto -bem, o resto foi o resto, e ainda bem que você não esqueceu: esses são esquecimentos imperdoáveis -a não ser que sejam merecidos.

Aliás, seria simples perguntar "como é mesmo o nome daquela praça em que estávamos no dia em que você me beijou pela primeira vez?"
Lembra de Garrincha, de quem se dizia que ele perguntava para os colegas jogadores "como é mesmo o nome da cidade onde eu comprei aquela gravata vermelha?"

Quantas vezes você não perguntou "em que restaurante mesmo nós comemos aquele maravilhoso risoto?" É, a memória é uma coisa mesmo curiosa. De algumas coisas da infância é fácil lembrar, ou melhor, impossível esquecer: das comidas, por exemplo.

Não que elas fossem tão fantásticas, mas, na lembrança, o arroz de forno dos domingos foi sempre inesquecível, mais do que qualquer iguaria comida no mais fantástico restaurante de 20 estrelas do mundo.

Lembrança puxa lembrança: quando ficava doente, o médico vinha em casa. Bastava ter uma febrinha e ele aparecia, geralmente antes do jantar, quando saía do consultório.

Ele era sempre simpático, paternal, e a consulta, simples. Primeiro, o termômetro; depois, ele puxava a pele debaixo do olho para examinar; em seguida, pedia uma colher, mandava abrir a boca e apertava a língua com o cabo, para ver a garganta.

Dava três pancadinhas na barriga para ouvir o som, e mais ou menos só. Não havia exame de nenhuma espécie, nem mesmo o de sangue. Naquele tempo, as mães só temiam uma coisa: vermes, mais popularmente conhecidos como lombrigas.

E as meninas que comiam muito e não engordavam tinham o maior dos medos: ter uma solitária. É uma lombriga, uma só, que na imaginação infantil tinha uns três metros de comprimento e se nutria de tudo que a criança comia -por isso ela continuava magra.

Se o problema era na garganta, o remédio era fazer uma embrocação. A mãe pegava um lápis, envolvia a ponta num algodão, atava com um fio de linha, para fixar, molhava em azul de metileno e pincelava a garganta -a criança aos gritos, claro.

Naquele tempo as doenças eram doces, das tias muito velhas se dizia que sofriam do coração -por isso não podiam levar sustos de nenhuma espécie- e morriam em casa, à noitinha, em silêncio, cercadas pela família e sem a presença de nenhum fotógrafo.

Era bem mais suave a vida -e até a morte- no tempo em que a medicina não era tão avançada.

danuza.leao@uol.com.br

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