sábado, 12 de abril de 2008



12 de abril de 2008
N° 15569 - Cláudia Laitano


Recompensas

Um cachorrinho perdido provocou um debate ético mais ou menos profundo lá em casa esta semana. Voltávamos a pé da aula de inglês - eu, minha filha e todo o cansaço de um final de tarde.

Em um poste da mal-iluminada Carlos Trein, um fiapo de luz destacava um pequeno cartaz com a foto de Glok, um totó de aspecto amigável que aparentemente arriscou-se em um passeio mais longo e perdeu o rumo de casa, deixando para trás uma família aflita e uma coleção de cartazes de "procura-se" espalhados pela vizinhança.

O primeiro impulso da minha filha foi nobre: imaginou-se no lugar das crianças da casa, possivelmente tão ligadas ao Glok quanto ela a sua gatinha vira-lata - e ficou triste por elas, supondo a angústia de quem perde um bicho tão pequeno em uma cidade tão cheia de ruas e postes.

O segundo impulso, não tão nobre, foi o tema do debate ético mais ou menos profundo. Embaixo da foto do Glok, uma palavrinha mágica, "recompensa", e uma cifra, R$ 500, acenderam um sentimento mais agudo e, digamos, mais "proativo" do que a solidariedade.

Antes que eu me desse conta, minha pequena Sherlock estava seriamente empenhada na tarefa de encontrar o cachorrinho, esquadrinhando cada canto da rua ao mesmo tempo em que usava toda a matemática da quarta série para calcular quantos pacotes de figurinhas e joguinhos de computador caberiam em uma mesada turbinada por R$ 500.

Sem querer estragar muito a brincadeira, fui obrigada a ponderar que, na remota hipótese de encontrarmos o Glok nas duas quadras que nos separavam de casa, o certo seria ligar para os donos e devolver o cachorro sem aceitar recompensa alguma.

Por que deveríamos ser recompensadas por fazer o que seria obviamente a única coisa correta a fazer naquela situação? O contrário, aceitar dinheiro para devolver o bichinho, não seria quase como pedir um resgate?

Ou, pior, colocar um preço na nossa consciência? A conversa terminou por aí, e ela me pareceu, se não totalmente convencida, pelo menos chacoalhada em suas convicções - o que não é pouca coisa para um debate mais ou menos profundo.

Quinhentos reais é menos do que a mensalidade da escola particular em que a minha filha estuda. Essa, portanto, não é uma cifra capaz de abalar muito meus princípios éticos. Mas e se o dono do cachorrinho fosse, sei lá, o Eike Batista, e o valor do agradecimento chegasse a, digamos, R$ 1 milhão?

Será que eu não estaria também fazendo as contas de quantos pacotinhos de figurinhas eu poderia comprar? E, mais que isso, não estaria eu também ajeitando meus argumentos para justificar o impulso de aceitar a recompensa? Pela saúde dos meus princípios éticos, espero nunca esbarrar no cachorrinho do Eike Batista.

As indenizações políticas para jornalistas perseguidos pela ditadura militar, distribuídas na semana que passou pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, teoricamente não são recompensas.

Mas parecem, já que é isso o que pode sugerir o termo "reparação econômica" - as maiores "reparações" foram concedidas aos cartunistas Jaguar (R$ 1.027.383, 29) e Ziraldo (R$ 1.253.000,24). Não estamos falando de famílias de desaparecidos políticos nem de professores de universidades federais que viram suas carreiras profissionais interrompidas - neste último caso, a indenização é quase uma ação trabalhista.

Estamos falando de jornalistas que, em determinado momento, fizeram o que achavam correto e digno, sofrendo conseqüencias por isso - algumas delas, não duvido, econômicas. Mas, de novo, será correto receber dinheiro quando apenas agimos conforme a nossa consciência?

No caso das indenizações, pagas com dinheiro público que poderia ser destinado, quem sabe, para algumas das coisas pelas quais tanto se lutou nos anos 60 e 70, a resposta me parece ainda mais evidente do que no caso do Glok.

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