sábado, 12 de abril de 2008



13 de abril de 2008
N° 15570 - Luis Fernando Verissimo


Charlton Heston

Os recém-chegados têm direito a um drinque de cortesia e a um "tour" guiado pelas instalações do Inferno (as salas de tortura, as fornalhas, a sauna etc.) para se ambientarem no lugar e ficarem sabendo o que os espera na eternidade.

Um dos atrativos do "tour" é o encontro com celebridades, grandes pecadores da História que passam correndo, perseguidos por diabetes que os espetam com seus tridentes, ou arrastados entre um martírio e outro.

Há dias, um grupo de recém-chegados passava pela Sala de Contrição Inútil, onde mortos recentes são postos para meditar sobre seus pecados e se arrependerem, não que isso vá fazer muita diferença, e teve uma surpresa:

- Charlton Heston!??

- É - disse o guia. - Em pessoa. Ou, no caso, em espírito.

- Mas ele...

- Pois é. Nós também nos surpreendemos. É verdade que houve a ligação dele com a tal associação nacional de rifles, responsável por alguns milhares de mortes nos Estados Unidos com o seu lóbi vitorioso contra o controle de armas. Mas, afinal, era a posição dele, e uma posição sincera.

- Seria pelo fato de ele ter sido um conservador?

- Não. Ao contrário do que diz a esquerda, os conservadores não vêm automaticamente para o Inferno.

- Seria um castigo pelas suas atuações no cinema?

- Também não. Ele não era tão ruim assim. Tinha um físico poderoso. Um queixo imponente. Certos papéis, ninguém conseguiria fazer como ele. Aliás, é por isso que ele está aqui.

- Ele veio para o Inferno porque só ele poderia fazer certos papéis?!

- É. Coisas da política - disse o guia, apontando para o alto. - Lá de cima.

Aparentemente, ao saber da morte de Charlton Heston, Deus se preocupara.

Não havia razão para não trazê-lo para o Céu, talvez com uma breve passagem pelo Purgatório, por causa daquela questão das armas. Mas aí começariam as comparações. E não demorariam a concluir que físico mesmo para o papel de Deus quem tinha era...

- Desce! - ordenara Deus.

Tudo é vaidade.

O PROFETA

Diziam que ninguém entendeu a Viena, e portanto o mundo, do seu tempo como Karl Kraus (1874 - 1936). Ele viveu para ver as primeiras vitórias do nazismo, mas a sua famosa sentença que na Viena de Hitler e de Freud se estava ensaiando o fim do mundo é anterior a isso. Foi uma profecia.

Aquele mundo acabou mesmo, em cima do divã do Freud e embaixo das panzerdivisionem do Hitler. Kraus também disse que certos poderosos têm o hábito de mentir para a imprensa e depois acreditar no que lêem. No caso, estava profetizando o Brasil de muitos anos depois.

TERMINUS

No ano 150 A.C., para sincronizar os ciclos lunares com os anos solares e organizar o resultado num método razoavelmente uniforme de medir o tempo, os romanos inventaram um mês de 22 ou 23 dias, chamado Mercedonius, que deveria ser inserido depois do dia 23 de fevereiro em anos intercalados - ou sempre que fosse preciso.

No velho calendário romano, 23 de fevereiro era o último dia do ano e dia do Festival da Terminalia, quando se faziam sacrifícios a Terminus, deus dos limites. Mas quem determinava se era preciso ou não acrescentar o Mercedonius no calendário e tornar o ano um mês mais longo eram os pontífices, os romanos encarregados de administrar os cultos do Estado.

E passou a ser comum os pontífices só alongarem os anos em que seus amigos estavam no poder.

Com um ou mais Mercedonius, estenderiam o mandato de seus preferidos sem necessidade de emendas de reeleição, compra de votos etc. O método não funcionaria no Brasil de hoje por dois motivos.

Um, a dificuldade em definir quem são, exatamente, os pontífices, ou os poderes, que devem administrar nossos cultos de Estado, e, uma vez definido isso, a gritaria dos outros poderes. Dois, a absoluta desmoralização entre nós do deus Terminus ou qualquer outro regulador de limites.

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