quarta-feira, 23 de abril de 2008



23 de abril de 2008
N° 15580 - Paulo Sant'ana


A combinação

- Vamos combinar o seguinte: se morarmos com nossos filhos e uma enteada num apartamento e de repente aflorar em um de nós dois um instinto bestial que faça com que punamos uma travessura da filha e da enteada com severidade, transcendendo logo em seguida para a crueldade, com o que o resultado que obtemos para esse comportamento é um ferimento grave e um esganamento mortal na menina, com o que nos assustamos por depararmo-nos com uma tragédia, em primeiro lugar tenhamos calma.

Logo em seguida, pondo os nervos em ordem, desfaçamo-nos do corpo, uma vez que com esta criança que nos parece morta aqui, restando inanimada neste apartamento que é nosso e dominamos, só poderão concluir que fomos nós que a matamos.

Se a atirarmos para fora, no entanto, com a queda aqui deste sexto andar, desaparecerão os vestígios do espancamento e esganamento que infligimos à criança. E principalmente nos livramos do corpo, mandamo-lo para outra esfera que não é a do nosso domínio, poderemos alegar que a menina desequilibrou-se e caiu ou até mesmo se suicidou.

O que não podemos é ficar com este corpo aqui junto de nós dentro deste apartamento, com estas marcas que a criança tem das nossas agressões e os vestígios do esganamento, todas as acusações estarão voltadas contra nós.

- Obviamente que haverá sempre alguém acusando a nós dois. Mas se nós dois mantivermos a versão de que um terceiro personagem foi o autor do homicídio, nestes tempos que correm em que a insegurança anda solta por todos os quadrantes, esta poderá ser uma versão que sustentaremos com galhardia.

É bem verdade que vão se aproveitar da fragilidade do nosso argumento no que se refere ao corpo atirado do sexto andar: todos dirão com razão que não podia haver nenhum interesse por parte do terceiro personagem que criamos em jogar o corpo lá de cima.

Por que o faria? Isso não tem nexo. Um ladrão que houvesse invadido o apartamento em poucos minutos, ainda assim teria levado algum objeto.

E não havia razão para um monstro qualquer que tivesse invadido o apartamento trucidar a Isabella, uma menina não teria capacidade para reagir nem intimidar o agressor. Entende uma coisa, nós estamos em apuros, este argumento de que foi uma terceira pessoa que invadiu o apartamento é frágil, não se sustenta, mas é o único argumento que temos.

Sem esse argumento, só nos restaria confessar. E com este argumento nós vamos resistir dois ou três anos, podemos até ter chance de sermos absolvidos, dependendo dos trâmites do processo e do julgamento, ou até chance de sermos condenados com pena mínima.

O que precisamos é manter o argumento, ainda que absurdo, o que precisamos é resistir até o fim. Caso contrário, se um de nós dois fraquejar, tomba. E confessa. Nesse caso, inapelavelmente, como de saída negamos a autoria do crime, seremos ambos condenados.

- E se a opinião pública estiver se corporificando contra nós, temos de tomar uma providência. Vamos escolher um espaço de televisão na Rede Globo, um canhão de audiência.

Não pode ser o Jornal Nacional porque o espaço de tempo é pequeno. Tem de ser no Fantástico, grande audiência e tempo de sobra para que possamos tentar modificar a tendência da opinião pública com nossas explicações. Veja bem, tenha em mente sempre o seguinte: é preciso chorar.

Tem de chorar sempre que possa chorar. Para isso tem de usar a técnica de imaginar o que será de nós e de nossos filhos se formos para a cadeia. Chore, que eu vou tentar chorar também sempre que puder.

Chore e, se o repórter perguntar sobre aspectos técnicos do crime, desconverse. Se perguntar, por exemplo, como havia manchas de sangue no nosso carro, diga que não sabe. Desconverse. O que interessa é chorar e falar muito na ternura que comandou a família unida até agora.

Chore e fale na Isabella amada por nós dois e principalmente fale nos instantes felizes que sempre vivemos com Isabella, chore, venha por mim, chore e elogie Isabella e fundamentalmente finja que nós amávamos mais Isabella do que aos nossos outros filhos.

Tem de fingir, tem de chorar. Tem de tergiversar. É o nosso único recurso. Se não for assim, estamos fritos.

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