quarta-feira, 16 de abril de 2008



16 de abril de 2008
N° 15573 - Martha Medeiros


Antes e depois de João Hélio

A expressão "banalização da violência" tem sido usada há anos para designar crimes estarrecedores que não estarrecem mais, brutalidades fora do comum que viraram comuns, casos inacreditáveis em que passamos a acreditar fácil, fácil. Com isso, a expressão caducou. Dizer que hoje há uma banalização da violência também virou banal.

Eu não sei em que momento a morte passou a ser nada. Nada. Acho que foi a partir do João Hélio, aquele menino de sete anos que foi arrastado pelas ruas por um carro conduzido por assaltantes, preso a um cinto de segurança.

Aquilo foi um divisor de águas, ao menos pra mim. O tempo passou a se dividir entre A.J.H. e D.J.H. (Antes e Depois de João Hélio).

Depois de João Hélio, tudo poderia acontecer. E acontece. Crianças entre oito e 10 anos planejam assassinar uma professora porque ela deixou de castigo um aluno indisciplinado (não fosse um coleguinha dedurar, o assassinato teria acontecido, numa escola dos Estados Unidos - atenção: crianças entre oito e 10 anos!).

E tem o discutidíssimo caso da menina Isabella, jogada viva do sexto andar por causa de quê? De algum surto de raiva, de algum destempero, alguma falta de controle, essas oscilações de humor que a gente costuma ter normalmente.

Normalmente, a morte virou rotina.

O que é que ainda surpreenderia você? Consegue imaginar algo que o deixaria boquiaberto, incapacitado de entender? Eu, não. Nada mais pode me deixar de queixo caído, estarrecida.

Um pai abusar sexualmente de seu bebê de dois meses, um padre esquartejar uma moça que não rezou o pai-nosso direito, um adolescente se matar porque não ganhou um carro ao passar no vestibular.

O que é que faria você pensar que esse mundo está perdido? O mundo não está perdido, a morte é que deixou de ser uma exceção. A morte não veste mais preto, não é mais trágica, perdeu a importância e o respeito.

A morte é apenas um acidente de percurso, como um tombo, um atraso, um descuido. Ops, estrangulei minha filha num acesso de loucura, me excedi, desculpe.

Isso não é exatamente novo. Esses "acidentes de percurso" acontecem desde o big bang, quando deu-se o início da vida e da morte.

O instinto humano é animal, somos bichos domesticados que às vezes esquecem as lições de casa e põem-se a agir feito feras. Até aí, sociologia, psicologia, tudo explica.

O que não se explica é que tenha se tornado tão corriqueiro. Fico tentada a dizer que isso pode ser conseqüência de estímulos cinematográficos demais, porém corro o risco de ser linchada - vai condenar a tevê, o cinema, os jogos de computador?

Vou. Nunca defenderia a censura, mas proponho mais consciência por parte dos realizadores.

Chega de tanto catastrofismo a título de diversão. Parafraseando Rimbaud, por falta de delicadeza, estamos perdendo a vida.

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