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quarta-feira, 16 de abril de 2008
16 de abril de 2008
N° 15573 - David Coimbra
O pensador francês e a minha avó
Segundo o pensador Edgar Morin, minha vó tinha razão.
Dona Dina, lembro bem de quando ela dizia coisas parecidas com as que disse o grande sociólogo francês segunda-feira passada, no Fronteiras do Pensamento. Lembro bem. Dona Dina cozinhava, estava sempre cozinhando. Preparava iguarias deliciosas.
Massa feita em casa, ela mesma retalhava as tiras e as dispunha lado a lado sobre a mesa da cozinha, polvilhadas de farinha branca. Da uva das parreiras do quintal ela fazia schmier, suco, sagu. Do leite, coalhada, requeijão e até manteiga.
Minha avó criava bichos para deles se servir. Matava uma galinha com um único golpe: torcia-lhe o pescoço e a coitada só emitia um "c..." e morria. Tinha uma porca, a Chica, que lhe atendia quando a chamava com sua voz fina:
- Chiiiiiiiica!
A Chica vinha correndo, balançando as gordas ancas suínas. Mesmo assim, minha vó não a poupou. Num domingo de outono, a Chica se transformou em lingüiça, torresmo e tempero da feijoada. Dona Dina era implacável, sim senhor. E falava verdades tais quais Edgar Morin, como:
- Chegamos ao fim do mundo.
Morin foi igualzinho, no Fronteiras. A civilização está em crise, alardeou, os problemas da humanidade não foram resolvidos e o modelo de vida nesse vale de lágrimas caminha para o fim inexorável.
Mas pingou ponto final de esperança: talvez, e apenas talvez, depois do caos esse tipo de sociedade seja trocado por outro um pouco melhor.
Sei porque Morin pensa dessa forma. Porque é francês. Mais: francês e comunista. Os franceses comunistas juram que as revoltas de maio de 68, em Paris, mudaram o mundo e foram decisivas para os rumos da Humanidade.
A velha arrogância gaulesa. Nesse caso, concordo com outro francês, Michel Houellebecq, que no ano passado, no mesmo Fronteiras, disse que o rock transformou muito mais o mundo do que as rebeliões estudantis de maio de 68.
Agora, há que se admitir: maio de 68 foi responsável por pelo menos uma transformação: a da própria França, mumificando-a. Culturalmente, nada mais surgiu na França, desde então.
Os pensadores, os filósofos, os músicos e os escritores franceses não produziram nada que amarrasse a botina esquerda de seus conterrâneos do século 19. Por quê?
Porque econômica e politicamente a França caminhou para trás, a partir de 68, seguindo justamente os modelos pregados pelos estudantes rebelados. Hoje, o Estado francês está emperrado pela burocracia e por sua estrutura paternalista.
Os compatriotas de Morin terão de promover reformas profundas em setores como a previdência. Terão de fazer mais ou menos o contrário do que o Senado brasileiro pretende ao aprovar o recente projeto paternalista para os aposentados, de autoria do gaúcho Paulo Paim.
O que franceses comunistas não suportam é que a estrutura de pensamento mais humana, libertária e bem acabada da Civilização tenha surgido nos Estados Unidos, mais de uma década antes da Revolução Francesa, e que, implantada, essa ideologia tenha funcionado e ainda funcione.
Já a Revolução Francesa, depois de mergulhar o país em sangue, acabou na volta da monarquia. A pátria da liberdade não é a França; são os Estados Unidos.
Assim, Morin e quaisquer outros franceses comunistas não enxergam que o mundo está melhor do que jamais esteve. Morin gritou que estamos em crise.
O mundo sempre esteve em crise. Com guerras mundiais, com exploração desumana dos trabalhadores, com uma medicina bárbara, com falta de noção de higiene e saúde, com restrições de liberdade.
Hoje existe consciência de Direitos Humanos, de ecologia, da importância da paz, hoje o racismo é reprimido, a alimentação e o vestuário estão mais acessíveis do que em qualquer época da História, hoje a mulher tem liberdade, pelo menos a mulher do mundo ocidental, e hoje as comunicações aproximaram as pessoas. Hoje qualquer lúmpen tem telefone celular e ninguém mais precisa montar uma biblioteca em casa para ter informação precisa.
Hoje a medicina elevou a expectativa de vida para as fímbrias dos cem anos. Hoje as pessoas sabem mais acerca de si mesmas e das outras pessoas. Hoje a Europa de Morin está consolidando pacificamente o sonho de Júlio César, Hitler e Napoleão e transformando-se num único país.
E tudo isso aconteceu, em grande parte, graças aos Estados Unidos. Mas não é algo que um francês comunista reconhecerá.
Há um setor no qual o pessimismo francês se encaixa: no futebol. O velho futebol acabou.
Pelo menos o brasileiro, transformado pela CBF num território colonial dos europeus, com sua nefanda Lei Pelé, suas seleções de crianças tipo exportação, seu soporífero campeonato de pontos corridos.
Não é à toa que 25% dos brasileiros sentem ojeriza ao futebol, de acordo com pesquisas de opinião. Esse percentual vai aumentar a cada dia, a cada mês, a cada ano. E assim, pelo menos num terreno, Morin e a minha vó terão razão.
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