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domingo, 13 de abril de 2008
FERREIRA GULLAR
Frases de vidro
Não posso negar que sou dado aos aforismos, mania que, creio eu, peguei dos surrealistas
NUMA DE minhas intervenções, na Flip, em Paraty (RJ), em agosto passado, afirmei que uma das piores coisas do mundo é querer ter razão. Referia-me, implicitamente, à guerra entre judeus e palestinos, mas exemplifiquei com as brigas de casais.
O cara insiste em ter razão, discute com a mulher, ela contra-argumenta, os dois se exaltam e daqui a pouco estão amuados, cada um no seu canto. Cheios de razão, mas infelizes. "Não quero ter razão", disse eu, "quero ser feliz".
Mais tarde, durante a sessão de autógrafos, as pessoas repetiam a minha frase e pediam que eu escrevesse no livro. Um rapaz falou-me: "Vou agora mesmo telefonar para minha namorada e dizer a ela que me desculpe, que eu não tinha razão na discussão". À noite, no restaurante, várias pessoas vieram falar comigo sobre a frase e outros gritavam de longe: "Não quero ter razão".
Mas isso não é razão para me classificar de frasista. Se bem entendo, frasista deve ser aquele sujeito que fica bolando frases de efeito. Não é o meu caso. Essa frase, por exemplo, que tocou tanta gente, não a tinha pensado antes, saiu no momento.
A verdade é que há muito reflito sobre a insistência das pessoas em terem razão, ainda quando se trate de um assunto sem importância.
Não posso negar, porém, que sou dado aos aforismos, mania que, creio eu, peguei dos surrealistas, autores de frases irreverentes e inesquecíveis...
Como se sabe, os aforismos devem supostamente encerrar uma verdade, são sintéticas formulações da sabedoria popular, quando não a voz de Deus falando por meio dos profetas. Por isso mesmo, aquela turma de endiabrados que se juntaram à volta de André Breton valeu-se do aforismo para manifestar sua irreverência.
"Bate em tua mãe enquanto ela é jovem", dizia uma daquelas máximas, que me faz rir a cada momento que dela me lembro, como agora. Certamente, jamais pensei em bater em minha mãe, embora, naquela época, fosse ela ainda jovem.
Outros aforismos são docemente subversivos como o que diz: "Parents! Raccontez vos rêves a vos enfants", que, traduzido, perde um pouco a graça: "Pais! Contem seus sonhos a seus filhos". E esse aqui do pintor Francis Picabia, que mais tarde se aliaria a Marcel Duchamp no movimento dadaísta: "As flores e os bombons me dão dor de dentes".
E, por falar em dadaísmo, lembrei-me da célebre frase de Tristan Tzara que assegura: "O pensamento se faz na boca", donde pode se ter originado o conceito surrealista de escrita automática ou automatismo psíquico.
Outro aforismo irreverente é este de Benjamin Péret, que depois serviu como título de um de seus livros de poemas: "Desse pão não comerei", para contrariar a conhecida frase bíblica que aconselha: "Não diga nunca desse pão não comerei, dessa água não beberei". Foi inspirado nesses malucos-beleza que criei meu primeiro aforismo: "O futuro é dos porcos".
Como o uso do cachimbo faz a boca torta, certo dia, ao me deparar com um livro que ensinava tudo sobre a crase, reagi: "Maria, mãe do Divino Cordeiro, craseava mal. E o próprio Divino Cordeiro não era o que se pode chamar de um bamba da crase".
E segui o rumo à revista "Manchete", que ficava então na rua Frei Caneca. No caminho, fui inventando novos aforismos: "Quem tem frase de vidro não joga crase na frase do vizinho". Cada vez mais animado, bolei o aforismo que se tornaria famoso: "A crase não foi feita para humilhar ninguém".
Na redação da "Manchete", sentei-me à máquina e, em vez de escrever o texto que me cabia redigir, fiquei datilografando as frases recém-inventadas e inventando outras. Satisfeito com o resultado, fui à procura do Nelson Rodrigues, que trabalhava naquele mesmo andar, na redação da "Manchete Esportiva".
Li os aforismos para ele, que, após refletir por algum tempo, sentenciou: "Essas máximas, meu caro poeta, vêm em socorro de milhões de brasileiros aterrorizados pela crase". Não sabia se estava falando sério ou gozando, mas, de qualquer modo, agradeci-lhe a opinião.
Naquela época, tornei-me fã de um mestre brasileiro do aforismo, que foi o barão de Itararé, autor de uma sentença que encerrava então uma verdade sociológica, antecipadora do Fome Zero: "Quando pobre come frango, um dos dois está doente".
Nesse mestre, creio eu, terá se inspirado Millôr Fernandes para criar aforismos de implacável realismo, como o que diz: "Todo mundo começa Rimbaud e acaba Olegário Mariano".
Se estes sábios gozadores da condição humana são frasistas, então, não me importo de ser também tido como tal, ainda que alguns degraus abaixo.
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