07
de maio de 2013 | N° 17425
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Solo sagrado da
amizade
Era
um vizinho chato. Insuportável. Ranzinza. Hilton.
Com
nome de cigarro e de hotel.
Ao
assumir o apartamento, fui brindado com uma carta de oito páginas por debaixo
da porta, onde ele – o Hilton – explicava que não dormia devido à falta de
mangueira do meu ar-condicionado.
Quanta
solenidade. Por que não me chamou ou não mandou um bilhete? Oito páginas para
relatar um pequeno incômodo é ócio, é carência espalhafatosa, é exercício
literário.
Atendi
ao pedido, e evitei a soberba de corrigir as vírgulas do texto.
Dois
meses depois, ele reclamava do salto alto de madrugada usado pela minha esposa
na época. Sim, qual é o problema? O problema seria se ela calçasse broxantes
pantufas. Mas o pior é que não era minha mulher que incomodava, porém eu e as
minhas botas argentinas.
Considerava
o sujeito fresco demais, hipersensível, desocupado, com a tara de controlar os
sons da casa dos outros. Com certeza, guardava uma vocação inata para síndico.
Não
duvidava de mais nada. Em seguida, reclamaria que puxava a descarga forte, que
tossia alto, que gemia estranho, que não deveria ligar o liquidificador antes
das oito horas.
Cobrança
excessiva gera paranoia, eu fazia questão de odiá-lo sem reservas e idealizava
macumbas e unguentos pelo corredor do prédio.
Três
meses depois, o encanamento de nosso rancor explodiu. Ele telefonou cobrando um
vazamento no seu banheiro. Trocamos gritos e ofensas até descobrirmos a origem
da infiltração longe de minha culpa e de sua responsabilidade – aconteceram
avarias naturais da fachada externa do prédio.
Já
não conseguia nem ser hipócrita e cumprimentá-lo no corredor. Não haveria
conserto em nossa amizade. Jamais. Eu pensava nisso. Foi quando me apaixonei
por Juliana em março.
Ela
me disse que seu melhor amigo morava no segundo andar. Que
ironia. Logo
aquele insuportável. Logo
aquele ranzinza.
Ilton
na verdade, sem o H, pois não era cigarro para tragar, muito menos hotel para
oferecer hospedagem.
Minha
namorada armou um jantar de reconciliação. Resisti, bati o pé com o salto
argentino, terminei vencido. Ilton
mostrou-se educado e carinhoso. Um cavaleiro de rosto erguido. Se estivesse na
Idade Média, seria um templário.
Não
sofre com a espontaneidade. Abraça com força, chora e se emociona ao lembrar as
reuniões dançantes com Keep Cooler. É engraçado e autêntico. Coleciona rolhas
de vinhos como a gente, lê os mesmos livros, partilha medos iguais: quando
pequeno temia mais perder a visão do que dormir no escuro.
Faltava-nos
somente tempo para conversar – enfim via que somos parecidos, próximos,
semelhantes. Eu o rejeitava por antecipação e cisma. Pela ideia de que vizinho
irá nos incomodar um dia.
Ilton
é hoje meu melhor amigo emprestado. Ele me deu um terço de presente com areia
da Terra Santa. Veio com um bilhete:
–
Pode pisar à vontade, é solo sagrado da amizade.
Vou
rezar por mim. Para, na próxima vez, não ser tão preconceituoso.
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