terça-feira, 21 de maio de 2013


ANNA VERONICA MAUTNER amautner@uol.com.br

Ódio no corpo

Vemos lutas nas quais ossos são quebrados e músculos, estraçalhados; há sangue por toda parte. E o corpo se faz carne, hoje objeto e alvo do mal entre nós. Na medida em que o corpo se torna carne, ele perde o caráter de sagrado. Ninguém respeita a carne. A troco do que afirmo isso?

Quero abordar de uma certa forma, para tentar me fazer entender, o tema da violência, mas violência enquanto desrespeito à estrutura corporal humana.

Cada dia mais vemos notícias sobre lutas nas quais corpos são arrebentados e esquartejados. Ossos são quebrados, músculos são estraçalhados... Há sangue por toda parte.

Esses embates corpo a corpo guardam pouca semelhança com ataques que envolvem instrumentos ou armas. Uma espada corta em linha reta, não estraçalha. Uma bala atravessa, destrói internamente.

A notícia de um jovem que levou com ele um braço arrancado em um desastre e jogou esse pedaço de corpo no rio é avassaladora. Um braço fora do corpo é uma visão draconiana.

Morrer, matar, tirar a vida --arrisco-me a dizer-- é diferente de desmanchar milhões de anos da evolução que fez o corpo humano chegar à sua forma atual. Desqualificar a forma é destruir essa transformação.

A luta nas trincheiras na Primeira Guerra Mundial também incluía desfigurações. Desfigurar inimigos um a um, face a face, é a suprema desumanidade. Quando caiu a bomba atômica, o mundo silenciou de susto. Pessoas em todos os continentes pararam. Também a energia nuclear emitida pela bomba, quando não matou, desfigurou.

Durante anos vimos fotografias dos sobreviventes deformados pela bomba atômica, mesmo que eles tivessem estado a muitos quilômetros da explosão.

Atacar a obra da evolução da espécie, estraçalhar, desfigurar, esquartejar não é contra um: é contra todos. Cada corpo é uma obra final, atual, de hoje, produzida pela natureza, passo a passo, de mutação em mutação, através dos tempos.

O ódio deforma. Já o amor admira, adere, toca, adora a obra. O amor se dá sempre entre corpos que a natureza modelou.

Cuidado, pois, com o outro corpo à sua frente! Que nem todo o ódio do mundo seja suficiente para desmanchar o que os milênios constituíram.

Nos velórios, preservamos inteiro até o homem morto, para que seja visto em sua estrutura normal. Ele não tem mais vida, mas mantém a forma. É um homem --morto. Porém, um homem.

ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) e "Educação ou o quê?" (Summus)

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