FERREIRA
GULLAR
Ditadura da maioria
O
populismo petista demonstra inconformismo com normas que o impedem de fazer o
que queira
Não
faz muito tempo, ouvi um deputado afirmar que o que define um governo democrático
é a eleição. Se foi eleito, é democrático.
Todos
sabemos que não é bem assim, pois, conforme a força que tenha sobre as instituições,
pode um governo impor sua vontade e anular o direito dos adversários. A eleição
é, sem dúvida, uma condição necessária para que se constitua um governo democrático,
mas não é suficiente.
Se
abordo esta questão aqui é porque vejo naquela simplificação uma ameaça à democracia,
fenômeno crescente em vários países da América Latina e até mesmo no Brasil. Na
verdade, essa é uma das manifestações antidemocráticas do neopopulismo, hoje
hegemônico em alguns países latino-americanos.
Já defini
esse novo populismo como o caminho que tomou certa esquerda radical, ao
constatar a inviabilidade de seus propósitos ditos revolucionários. Não se
trata mais de opor a classe operária à burguesia, mas de opor os pobres aos
ricos.
O
populismo age correta e legitimamente quando busca melhorar as condições de
vida dos setores mais carentes da sociedade, o que lhe permite conquistar uma
ampla base eleitoral. Mas se torna uma ameaça à democracia quando usa esse
poder político para calar a voz dos opositores e, desse modo, eternizar-se no
poder.
Exemplo
disso foi o governo de Hugo Chávez na Venezuela. O domínio dos diferentes
poderes do Estado permitiu ao chavismo manter-se no governo mesmo após a morte
de seu líder, violando abertamente todas as normas constitucionais. Essa tese
de que basta ter sido eleito para ser um governo democrático é conveniente ao
populismo porque, contando com o apoio da maioria da população, usa-o como um
aval para fazer o que quiser.
Está
implícita nessa atitude uma espécie de sofisma, segundo o qual, se o povo é dono
do poder, quem contraria sua vontade é que atenta contra a democracia. E quem
sabe o que o povo quer é o caudilho.
Sucede
que o governante eleito, como todos os demais cidadãos, está sujeito às leis,
que estabelecem limites à ação de qualquer um, inclusive dos governantes. Não
por acaso, todos eles, ao tomarem posse depois de eleitos, juram obedecer e
seguir as normas constitucionais.
No
Brasil agora mesmo, o populismo petista demonstra inconformismo com essas
normas que o impedem de fazer o que queira. A condenação dos corruptos do
mensalão pelo Supremo Tribunal Federal levou-os a tentar desqualificar aquela
corte de Justiça, acusando-a de ter realizado um julgamento político e não jurídico.
Como
tais alegações não têm fundamento nem dificilmente mudariam a decisão tomada,
resolveram alterar a Constituição para de algum modo anular a autonomia do STF.
Por
iniciativa de um deputado petista, foi aprovada pela Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara uma emenda constitucional que resultaria em submeter decisões
do Supremo Tribunal à aprovação do Congresso, numa flagrante violação da
autonomia dos poderes da República, base do regime democrático.
Essa
iniciativa provocou revolta nos mais diversos setores da opinião pública e até mesmo
a Presidência da República, por meio do vice-presidente Michel Temer, procurou
desautorizá-la. Não obstante, os presidentes da Câmara e do Senado manifestaram
seu descontentamento a supostas intervenções do STF nas decisões do Congresso.
Com
o mesmo propósito, tenta-se excluir do Ministério Público a atribuição de
investigar e processar os responsáveis por crimes na área pública.
É que
o populismo não tolera nada que lhe imponha limites e o critique. Por isso
mesmo, um de seus inimigos naturais é a imprensa livre, de que a opinião
divergente dispõe para se fazer ouvir.
Na
Argentina, o populismo de Cristina Kirchner estatizou a única empresa que
fornece papel aos jornais do país, o que significa uma ameaça a todo e qualquer
jornal que se atreva a criticar-lhe as decisões além do que ela permita.
Quando
consuma seus objetivos, o populismo estabelece o que ficou conhecido como a
ditadura da maioria. Denominação, aliás, pouco apropriada, já que, nestes
casos, o poder é, de fato, exercido por um líder carismático, a quem a maioria
do povo segue cegamente.
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