sábado, 25 de maio de 2013


26 de maio de 2013 | N° 17444
ARTIGOS - Diana Lichtenstein Corso*

Latindo para os pneus

Quem anda por estradas poeirentas do interior está acostumado com o assédio da cachorrada sobre carros e motos. Sozinhos ou em bandos, eles saem latindo atrás do veículo. Um inimigo que deve ser custodiado pelos batedores de quatro patas, em clima ameaçador, até sair do território deles. As rodas, por estarem na altura dos vigias e movimentarem-se visivelmente, polarizam a atenção e são alvo dos latidos.

Evocando esse cenário, uma amiga alcunhou uma frase que julga representar seu estilo de lidar com os próprios desejos: “Sou como cachorro com pneu. Quando o carro para, não sei o que fazer com ele”. É uma boa imagem, em vários sentidos.

Conseguir parar o veículo é sinal de poder por parte do animal guardião. É como se, “assustado”, o invasor tivesse ficado paralisado. As cobiçadas rodas ficam à disposição, poderiam ser mordidas. Porém, imóveis elas deixam de fazer sentido. É difícil morder uma roda, dura e grande para sua boca. Mal ou bem, o interesse pela roda era somente um mero representante do jogo de forças: o objetivo era uma disputa de território e prestígio. Claro, estamos aqui cometendo liberdades poéticas, metáforas caninas.

Tentamos ser menos bobos do que os cães, latir para as coisas certas, ser menos irracionais, não avaliar mal a ameaça e gastar energia à toa. Mas volta e meia nos parecemos a eles. Quando escolhemos um objeto de cobiça, pode ser algo ou alguém que queremos, agimos tão convencidos da tarefa como o exemplo acima. No momento de alcançar a graça pela qual tanto lutamos, em geral não sabemos o que fazer, ficamos olhando para nosso pneu, confusos.

Minha amiga tem razão, e está mais acompanhada do que pensa. Um amor conquistado parece muito menos atraente, emocionante ou interessante. Às vezes, não acreditamos e rejeitamos por antecipação aquele que julgamos vai se desiludir de nós. Uma posição de prestígio, atingida por méritos, pode ser mal utilizada ou mesmo recusada, porque imaginamos que aquele lugar idealizado só poderia ser ocupado por alguém melhor do que nós. Levante a mão aquele que não se julgar uma fraude.

Algo adquirido com esforço parece menor do que no catálogo. Uma viagem muito planejada sempre tem aquele momento “o que estou fazendo aqui”. Enfim, é mais fácil lidar com o fracasso do que com o sucesso, pois, pelo jeito, a melhor parte é continuar querendo. 

A satisfação de um desejo nos obriga a renegociar nossos objetivos e autoimagem. Sentir-se incompleto e desvalido é reconfortante, podemos imaginar um mundo idealizado dos ricos e famosos, colocá-los no altar de nossos ideais e ficar cultuando, rezando lamúrias.

Como esses cachorros, na verdade esperamos que o pneu continue rodando para além da nossa jurisdição. Assim podemos seguir vivendo, embalados pelo que quería- mos, o que seríamos, empanturrados de “se”. A maior tarefa, porém, consiste em descobrir o que fazer com o pneu. E em nome do que continuar correndo depois disso. Eis a verdadeira valentia.


*PSICANALISTA

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