26
de maio de 2013 | N° 17444
ARTIGOS
- Diana Lichtenstein Corso*
Latindo para os
pneus
Quem
anda por estradas poeirentas do interior está acostumado com o assédio da
cachorrada sobre carros e motos. Sozinhos ou em bandos, eles saem latindo atrás
do veículo. Um inimigo que deve ser custodiado pelos batedores de quatro patas,
em clima ameaçador, até sair do território deles. As rodas, por estarem na
altura dos vigias e movimentarem-se visivelmente, polarizam a atenção e são
alvo dos latidos.
Evocando
esse cenário, uma amiga alcunhou uma frase que julga representar seu estilo de
lidar com os próprios desejos: “Sou como cachorro com pneu. Quando o carro
para, não sei o que fazer com ele”. É uma boa imagem, em vários sentidos.
Conseguir
parar o veículo é sinal de poder por parte do animal guardião. É como se,
“assustado”, o invasor tivesse ficado paralisado. As cobiçadas rodas ficam à
disposição, poderiam ser mordidas. Porém, imóveis elas deixam de fazer sentido.
É difícil morder uma roda, dura e grande para sua boca. Mal ou bem, o interesse
pela roda era somente um mero representante do jogo de forças: o objetivo era
uma disputa de território e prestígio. Claro, estamos aqui cometendo liberdades
poéticas, metáforas caninas.
Tentamos
ser menos bobos do que os cães, latir para as coisas certas, ser menos
irracionais, não avaliar mal a ameaça e gastar energia à toa. Mas volta e meia
nos parecemos a eles. Quando escolhemos um objeto de cobiça, pode ser algo ou
alguém que queremos, agimos tão convencidos da tarefa como o exemplo acima. No
momento de alcançar a graça pela qual tanto lutamos, em geral não sabemos o que
fazer, ficamos olhando para nosso pneu, confusos.
Minha
amiga tem razão, e está mais acompanhada do que pensa. Um amor conquistado
parece muito menos atraente, emocionante ou interessante. Às vezes, não
acreditamos e rejeitamos por antecipação aquele que julgamos vai se desiludir
de nós. Uma posição de prestígio, atingida por méritos, pode ser mal utilizada
ou mesmo recusada, porque imaginamos que aquele lugar idealizado só poderia ser
ocupado por alguém melhor do que nós. Levante a mão aquele que não se julgar
uma fraude.
Algo
adquirido com esforço parece menor do que no catálogo. Uma viagem muito
planejada sempre tem aquele momento “o que estou fazendo aqui”. Enfim, é mais
fácil lidar com o fracasso do que com o sucesso, pois, pelo jeito, a melhor
parte é continuar querendo.
A satisfação de um desejo nos obriga a renegociar
nossos objetivos e autoimagem. Sentir-se incompleto e desvalido é
reconfortante, podemos imaginar um mundo idealizado dos ricos e famosos,
colocá-los no altar de nossos ideais e ficar cultuando, rezando lamúrias.
Como
esses cachorros, na verdade esperamos que o pneu continue rodando para além da
nossa jurisdição. Assim podemos seguir vivendo, embalados pelo que quería- mos,
o que seríamos, empanturrados de “se”. A maior tarefa, porém, consiste em
descobrir o que fazer com o pneu. E em nome do que continuar correndo depois
disso. Eis a verdadeira valentia.
*PSICANALISTA
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