ANA
ESTELA HADDAD
Ser mãe na adversidade
Por
que discutir a redução da maioridade penal antes de apontar para quem é capaz
de violar os direitos humanos de crianças e adolescentes?
O
culto à Deusa Mãe foi observado inicialmente na pré-história, por vezes
associada à Mãe Terra, representada como uma deusa geradora da vida. Nos primórdios
da história, a maternidade era considerada manifestação divina. O poder de
gerar novas vidas dava à mulher um caráter sagrado.
Ser
mãe, preparar outro ser humano para a vida... que tarefa desafiadora! O amor
entre pais e filhos é fortemente marcado pela noção de educação, e a formação
das crianças torna-se um fator importante para a garantia de uma sociedade saudável
(Zornig, 2010).
A
família contemporânea tem se modificado, mas mantém-se como primeiro referencial
de espaço de troca afetiva. As oportunidades para a garantia e qualificação da
vida dependem de um ambiente facilitador ao seu desenvolvimento, à produção de
vínculos e ao cuidado.
"Pode-se
dizer das crianças que não lhes interessa a perfeição mecânica. Precisam de
seres humanos à sua volta, que tenham êxitos e fracassos, pais suficientemente
bons" (Lev Vygotsky).
Neste
fim de semana, no Vale do Anhangabaú, a prefeitura abriu o diálogo: Ser Mãe em
São Paulo. O objetivo foi debater os desafios da função materna numa metrópole
como a nossa.
Queremos
manter o diálogo sobre a maternidade em diversos modelos de organização
familiar, em suas diversas etapas: antes da gestação (planejamento), durante a
gestação (cuidados, informação, prevenção), na infância, na adolescência, na saída
dos filhos de casa, na condição de avós.
A
maternidade em situações vulneráveis: as mães cuidadoras, as mães com deficiência,
as mães em situação de rua, as mães dependentes químicas. E nas diversas
culturas que vivem em São Paulo, como as dos novos imigrantes que vivem no
centro.
Entre
nossas convidadas estava uma garota que voltou a estudar depois de crescer nas
ruas com a sua mãe e que aos 18 já tinha dois filhos que dela dependem.
Lembrei-me
da menina de 12 anos, grávida por ter sido abusada pelo pai após a morte da mãe,
que conversando com a assistente social verbalizou querer, apesar de tudo, dar à
luz seu "filho irmão". Talvez na tentativa desesperada de poder não
se sentir só e abandonada no mundo e resgatar a infância que lhe fora roubada.
Recebi
recentemente pela internet a imagem de uma menina de cinco anos que perdeu a mãe
na guerra. No pátio do orfanato, desenhou-a com giz e aconchegou-se num colo
que não existe mais, deixando fora as sandálias, para respeitá-la como manda a
cultura oriental ao se entrar num lugar sagrado.
O
que temos a dizer para as crianças às quais foi negado o direito ao vínculo
afetivo primeiro, aquele que nos ampara e protege antes e sempre, que nos
permite crescer e enfrentar o mundo em segurança?
Por
que discutimos a redução da maioridade penal antes de apontar para aqueles que,
tendo atingido a maioridade, são capazes de violar bárbara e impunemente os
direitos humanos de crianças e adolescentes que não têm como se defender,
criando profundas e irreversíveis iniquidades na origem?
Na
preparação do Ser Mãe em São Paulo estava um grupo de paulistanos convictos de
que podemos construir, juntos, uma cidade mais humana, capaz de acolher e abraçar
e de ser, um dia, um porto seguro para todas as suas mães e filhos.
ANA
ESTELA HADDAD, 46, livre docente da Faculdade de Odontologia da USP, é primeira
dama do município de São Paulo
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