FERREIRA
GULLAR
De Mao a
Xiao
Kissinger
afirma que Mao impeliu a China a uma década de frenesi ideológico e sectarismo
feroz
Esta
é a terceira crônica que escrevo tendo por referência o livro "Sobre a
China", de Henry Kissinger. Será a última e terá como assunto as figuras
de Mao Tse-tung e Deng Xiao Ping, os dois importantes líderes da China moderna,
isto é, a nova China surgida da Revolução Comunista de 1949.
Se,
nas crônicas anteriores, fui motivado pelas peculiaridades surpreendentes da
antiga China, nesta vou me ater a alguns fatos que, na minha opinião, deram
origem, de uma maneira ou de outra, à China de agora, tornada capitalista. Sim,
mas por se tratar da China, um capitalismo muito peculiar.
A
República Popular, que Mao implantou, por cima de uma história e uma cultura
milenares, tinha por modelo a URSS de Josef Stálin e, por isso mesmo, projetos
e decisões impostos à nação, de cima para baixo, por decisão e vontade do
líder.
Por
isso mesmo, quando, em 1956, Khruschov denunciou o stalinismo e propôs um modo
menos autoritário de conduzir o processo revolucionário, Mao rompeu com ele e o
acusou de trair o comunismo.
Certamente,
Mao havia mudado a velha China, introduzindo nela medidas econômicas e
educacionais que melhoraram sensivelmente a vida do povo chinês. Há, porém,
quem ponha em dúvida o seu grau de sensatez, quando passou a tomar decisões
delirantes como a de induzir os cidadãos a fabricarem aço em casa.
Milhões
de chefes de família teriam montado minissiderúrgicas no quintal da casa para,
ali, produzir aço. O resultado, como teria de ser, foi desastroso: toneladas de
aço de péssima qualidade, que não servia para nada.
Há
quem acredite estar nesse fracasso a origem da Revolução Cultural. Segundo
eles, tamanho insucesso teria comprometido a autoridade e o prestígio, até
então intocáveis, de Mao, gerando, dentro do Partido Comunista chinês, um
movimento contra a sua liderança. Muitos dirigentes passaram a crer que o
grande líder havia enlouquecido e que, para deter aquela rebelião, deflagrou a
Revolução Cultural que, em última análise, visava a desmontar o aparelho
partidário.
Kissinger
afirma que Mao impeliu a China a uma década de frenesi ideológico, sectarismo
feroz e quase a uma guerra civil. Nenhuma instituição foi poupada e, por todo o
país, governos locais foram desfeitos, destituídos líderes do Partido Comunista
e do Exército de Libertação Popular, incluindo comandantes da guerra
revolucionária, vítimas de expurgo e submetidos a humilhação pública.
Figuras
importantes do partido foram obrigadas a desfilar pelas ruas das cidades
ostentando orelhas de burro. Os jovens foram instados a saírem às ruas de todo
o país, atendendo à exortação de Mao, a fim de "aprenderem a revolução
fazendo a revolução".
Dirigentes
do partido eram enviados ao campo para aprender com os camponeses analfabetos a
lição revolucionária. Adolescentes tornaram-se tropas de choque ideológicas. A
nação chinesa virou de cabeça para baixo, com filhos se voltando contra os
pais, alunos humilhando professores, queimando livros. Em Pequim, os ataques
dos Guardas Vermelhos destruíram quase 5.000 locais de valor cultural e
histórico.
Após
a morte de Mao, Deng Xiao Ping, principal líder entre o fim dos anos 1970 e
início dos 1990-- que fora perseguido por Mao-- afirmou ter a Revolução Cultural
quase destruído o Partido Comunista como instituição e arruinara sua
credibilidade.
Quando
assumiu o governo, a China estava em situação pior do que quando Mao iniciara a
transformação revolucionária da sociedade chinesa. Na verdade, o Estado planejado,
longe de criar uma sociedade sem classes, terminara por estratificar as
classes.
Os
bens, em vez de serem comprados, eram distribuídos conforme as prerrogativas
oficiais, o que levou ao favoritismo e à corrupção, uma vez que tudo passou a
depender de influência partidária.
O
programa de reforma que Deng implantara destinou-se a erradicar o maoismo. Ele
e seus auxiliares mais próximos implantaram a economia de mercado, aberta ao
exterior, confiando no espírito empreendedor do povo chinês.
Não
resta dúvida de que nasceu então a China de hoje, de economia capitalista, no
polo oposto às teses maoistas. Não obstante, fiel à sagacidade tradicional
chinesa, manteve o culto a Mao Tse-tung, embora fizesse o contrário do que ele
fez e faria.
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