PASQUALE CIPRO NETO
(N)O mundo dos amados batistas
É bom
que se diga que não é preciso ser cristão para ter nojo da tortura, venha ela
de onde vier
Corriam
os tristes anos 70, quase 80. Em seu memorável LP "Nos Dias de Hoje",
Ivan Lins incluiu a canção "Aos Nossos Filhos" (melodia dele; letra
de Vítor Martins).
A
gravação de Ivan é linda, mas a de Elis Regina é mais do que antológica. Encarnando
cada palavra da pungente letra do ituveravense Vítor Martins, Elis chora e faz
chorar qualquer ser humano minimamente sensível. Se você nunca ouviu a canção
na voz de Elis, ouça-a. E tente saber do que tratam os versos de Vítor.
Eis
a letra: "Perdoem a cara amarrada / Perdoem a falta de abraço / Perdoem a
falta de espaço / Os dias eram assim / Perdoem por tantos perigos / Perdoem a
falta de abrigo / Perdoem a falta de amigos / Os dias eram assim / Perdoem a
falta de folhas / Perdoem a falta de ar / Perdoem a falta de escolha / Os dias
eram assim / E quando passarem a limpo /
E
quando cortarem os laços / E quando soltarem os cintos / Façam a festa por mim /
Quando lavarem a mágoa / Quando lavarem a alma / Quando lavarem a água / Lavem
os olhos por mim / Quando brotarem as flores / Quando crescerem as matas / Quando
colherem os frutos / Digam o gosto pra mim".
O
tempo passou, as coisas mudaram (um pouco só, creio) etc., e, diferentemente do
que ocorria naquela época, hoje o brasileiro pode dizer o que bem entender (ou
quase isso).
E aí
vem um cantor e compositor popular --bem popular-- e concede uma entrevista em
que declara que mereceu o "castigo" que lhe foi dado, já que ele "estava
errado" e recebeu de quem representava o poder estabelecido o mesmo
castigo que pais e mães podem dar a seus filhos a título de correção de
comportamento, de conduta etc. O "artista" disse que seu "erro"
foi ter usado de suas prerrogativas de funcionário de uma livraria para ceder a
algumas pessoas livros considerados "subversivos".
O
cantor disse que foi preso e torturado, física e psicologicamente, mas não acha
que seus torturadores erraram, embora ele não recuse os mil e tantos reais que
recebe mensalmente por ter sido vítima dessa tortura.
Como
sempre digo neste espaço, é preciso saber ler as linhas e, sobretudo, as
entrelinhas do que se diz ou se escreve. Em outras palavras, o tal "artista"
disse que pais e mães podem torturar, se o objetivo é "corrigir". Enfim,
quem faz coisa errada tem mesmo é que apanhar, ou, numa outra versão, menino
levado tem mesmo é de ir para o pau de arara.
É incrível
como nessas horas sempre se esquece um princípio básico da Constituição,
segundo o qual o Estado é responsável pela integridade dos que estão sob sua
custódia. É mais do que incrível ler nas tais "redes sociais" baboseiras
mil, de gente que não consegue de jeito nenhum ater-se à essência da coisa. Haja!
Nisso
tudo há uma grande ironia, que está no significado do nome e do sobrenome do
autor da pérola: o termo "amado" dispensa explicações; "batista"
é aquele que administra o batismo. Como se sabe, o batismo é o primeiro
sacramento do cristianismo, cujos princípios dispensam explicações e teorias,
mormente em pleno feriado de Corpus Christi. Definitivamente, não é nem um
pouco cristão defender a tortura, seja lá qual for a razão de sua prática. E, é
bom que se diga, não é preciso ser cristão para ter nojo da tortura, venha de
onde vier.
É,
meu caro Vítor, o tempo passou, mas, para muita gente escura e sombria, os teus
nobres versos ainda não se materializaram. Muita gente ainda não cortou os laços,
ainda não soltou os cintos. A alma ainda não foi de todo lavada. A água também
não foi lavada; continua suja, muito suja, talvez mais suja do que era quando
lavraste os versos de "Aos Nossos Filhos". E os frutos, se é que
foram colhidos, são ácidos, meu caro, e têm um gosto ruim, muito ruim. É isso.
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