terça-feira, 21 de maio de 2013


JOÃO PEREIRA COUTINHO

Felizes, mortos e enterrados

Hoje, ninguém deseja ser feliz se a sorte o permitir; as pessoas acreditam que têm o direito de ser felizes

Todos sabemos que o filósofo Sócrates foi condenado à morte. Poucos sabem exatamente por quê. Sim, nos bancos da escola aprendemos qualquer coisa sobre "o desrespeito pelos deuses da Cidade" e "a corrupção da juventude ateniense". Mas o que significam ao certo essas acusações? Onde estava o "desrespeito"? E onde estava a "corrupção"?

Fiz uma enquete privada entre colegas de ofício. Gente das ciências humanas, alguns de filosofia. Ninguém deu respostas satisfatórias. No máximo, havia apenas o clichê conhecido de um Sócrates que ensinava os outros a pensar pela própria cabeça e de como isso é uma ameaça para os poderes estabelecidos, e blá-blá-blá.

Bocejos. Sócrates não foi condenado por isso. O principal crime do filósofo foi ter subvertido para sempre a ideia de felicidade que vigorava na antiga Grécia. Há um livro de Darrin McMahon que explica o "crime" de forma inultrapassável: até Sócrates, escreve o autor em "The Pursuit of Happiness" (a busca da felicidade, em tradução livre), a ideia de felicidade estava intimamente ligada à noção de sorte.

Para os nossos antepassados pré-socráticos, a felicidade dos homens dependia sempre dos caprichos dos deuses. Por isso, os grandes dramaturgos do mundo helênico afirmavam que a única pessoa que se poderia considerar feliz era a pessoa morta. Porque sobre ela os deuses já não podiam fazer mais nada.

Sócrates destroçou essa concepção para afirmar, vários séculos antes do seu herdeiro Voltaire, que o paraíso é onde estamos. Eu sou senhor do meu destino, e a felicidade não é uma dádiva dos deuses. É uma construção minha, da minha razão soberana --um "direito", como escreveram depois os pais fundadores da República americana; e, sobretudo, um "dever", como escutamos nas novelas.

Hoje, ninguém deseja ser feliz se a sorte o permitir. As pessoas acreditam que têm o direito de ser felizes --e, mais ainda, o dever. E a sorte que se lixe.

Não vale a pena elaborar sobre a infelicidade que a "tirania da felicidade" provoca entre os contemporâneos. Pascal Bruckner já escreveu um ensaio primoroso a respeito, que recomendo ("L'Euphorie Perpétuelle", a euforia perpétua).

Mas vale a pena olhar para o caso Angelina Jolie. Falo do caso porque Jolie entendeu torná-lo público: de forma a eliminar as altíssimas hipóteses de ter câncer de mama, a atriz cortou os males literalmente pela raiz. Agora, segundo leio, pode seguir-se o ovário. Aplausos?

Nem aplausos, nem o seu contrário: a escolha é pessoal, e eu, confrontado com dilema semelhante, provavelmente faria o mesmo. Mas o mais interessante é acompanhar as discussões éticas que o caso provocou.

Se a medicina oferece tratamentos radicais para doenças graves e prováveis, justificam-se esses tratamentos?

Responder à questão implica saber primeiro que tipo de probabilidades são essas. E, já agora, que tipo de doenças. Uma hipótese de câncer próxima dos 90% não é o mesmo que uma hipótese mais modesta, facilmente quantificada em testes de DNA, para milhares de outras doenças.

O problema é que a nossa tradição racionalista (e socrática-platônica) também não se vai contentar com valores mais modestos. No fundo, e para regressar a Sócrates, não se vai contentar que os caprichos da sorte continuem a pairar sobre o nosso direito à felicidade --e à longevidade.

Se o paraíso é onde eu estou, também é "direito" e "dever" excluir todas as hipóteses (das mais prováveis às mais remotas) que ameaçam essa felicidade e longevidade.

Hoje, os seios. Amanhã, o ovário. Mas por que não eliminar também outros apêndices que, por definição, são vulneráveis à doença, a qualquer doença, em qualquer altura?

De órgão em órgão, de doença possível em doença possível, de inquietação crescente em inquietação crescente, a lista é generosa porque o corpo, imperfeito e perecível, não é. Até o dia em que nada mais resta para cortar.

Talvez nesse dia os herdeiros de Sócrates descubram com espanto que, afinal, os pré-socráticos tinham alguma razão. E que a única forma de estarmos completamente a salvo do infortúnio é se ficarmos bem mortos e enterrados.

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