JOÃO
PEREIRA COUTINHO
Felizes, mortos e enterrados
Hoje,
ninguém deseja ser feliz se a sorte o permitir; as pessoas acreditam que têm o
direito de ser felizes
Todos
sabemos que o filósofo Sócrates foi condenado à morte. Poucos sabem exatamente
por quê. Sim, nos bancos da escola aprendemos qualquer coisa sobre "o
desrespeito pelos deuses da Cidade" e "a corrupção da juventude
ateniense". Mas o que significam ao certo essas acusações? Onde estava o "desrespeito"?
E onde estava a "corrupção"?
Fiz
uma enquete privada entre colegas de ofício. Gente das ciências humanas, alguns
de filosofia. Ninguém deu respostas satisfatórias. No máximo, havia apenas o
clichê conhecido de um Sócrates que ensinava os outros a pensar pela própria
cabeça e de como isso é uma ameaça para os poderes estabelecidos, e blá-blá-blá.
Bocejos.
Sócrates não foi condenado por isso. O principal crime do filósofo foi ter
subvertido para sempre a ideia de felicidade que vigorava na antiga Grécia. Há um
livro de Darrin McMahon que explica o "crime" de forma inultrapassável:
até Sócrates, escreve o autor em "The Pursuit of Happiness" (a busca
da felicidade, em tradução livre), a ideia de felicidade estava intimamente
ligada à noção de sorte.
Para
os nossos antepassados pré-socráticos, a felicidade dos homens dependia sempre
dos caprichos dos deuses. Por isso, os grandes dramaturgos do mundo helênico
afirmavam que a única pessoa que se poderia considerar feliz era a pessoa morta.
Porque sobre ela os deuses já não podiam fazer mais nada.
Sócrates
destroçou essa concepção para afirmar, vários séculos antes do seu herdeiro
Voltaire, que o paraíso é onde estamos. Eu sou senhor do meu destino, e a
felicidade não é uma dádiva dos deuses. É uma construção minha, da minha razão
soberana --um "direito", como escreveram depois os pais fundadores da
República americana; e, sobretudo, um "dever", como escutamos nas
novelas.
Hoje,
ninguém deseja ser feliz se a sorte o permitir. As pessoas acreditam que têm o
direito de ser felizes --e, mais ainda, o dever. E a sorte que se lixe.
Não
vale a pena elaborar sobre a infelicidade que a "tirania da felicidade"
provoca entre os contemporâneos. Pascal Bruckner já escreveu um ensaio
primoroso a respeito, que recomendo ("L'Euphorie Perpétuelle", a
euforia perpétua).
Mas
vale a pena olhar para o caso Angelina Jolie. Falo do caso porque Jolie
entendeu torná-lo público: de forma a eliminar as altíssimas hipóteses de ter câncer
de mama, a atriz cortou os males literalmente pela raiz. Agora, segundo leio,
pode seguir-se o ovário. Aplausos?
Nem
aplausos, nem o seu contrário: a escolha é pessoal, e eu, confrontado com
dilema semelhante, provavelmente faria o mesmo. Mas o mais interessante é acompanhar
as discussões éticas que o caso provocou.
Se a
medicina oferece tratamentos radicais para doenças graves e prováveis,
justificam-se esses tratamentos?
Responder
à questão implica saber primeiro que tipo de probabilidades são essas. E, já agora,
que tipo de doenças. Uma hipótese de câncer próxima dos 90% não é o mesmo que
uma hipótese mais modesta, facilmente quantificada em testes de DNA, para
milhares de outras doenças.
O
problema é que a nossa tradição racionalista (e socrática-platônica) também não
se vai contentar com valores mais modestos. No fundo, e para regressar a Sócrates,
não se vai contentar que os caprichos da sorte continuem a pairar sobre o nosso
direito à felicidade --e à longevidade.
Se o
paraíso é onde eu estou, também é "direito" e "dever" excluir
todas as hipóteses (das mais prováveis às mais remotas) que ameaçam essa
felicidade e longevidade.
Hoje,
os seios. Amanhã, o ovário. Mas por que não eliminar também outros apêndices
que, por definição, são vulneráveis à doença, a qualquer doença, em qualquer
altura?
De órgão
em órgão, de doença possível em doença possível, de inquietação crescente em
inquietação crescente, a lista é generosa porque o corpo, imperfeito e perecível,
não é. Até o dia em que nada mais resta para cortar.
Talvez
nesse dia os herdeiros de Sócrates descubram com espanto que, afinal, os pré-socráticos
tinham alguma razão. E que a única forma de estarmos completamente a salvo do
infortúnio é se ficarmos bem mortos e enterrados.
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