27
de maio de 2013 | N° 17445
L.F.
VERISSIMO
Strangelove aos
90
O
Cristopher Hitchens escreveu certa vez que se fizera uma promessa: não leria
mais nada escrito pelo Henry Kissinger até que fossem publicadas suas cartas da
prisão. Hitchens morreu sem realizar seu desejo. Kissinger está fazendo 90 anos
esta semana e nunca foi preso ou sequer indiciado pela sua participação em
alguns dos maiores crimes do século passado.
Foi
ele quem trouxe a palavra “realpolitik” do alemão de Bismark para o vocabulário
da política moderna, e como secretário de Estado e conselheiro de governos
americanos foi o responsável pelo bombardeio semiclandestino do Camboja durante
a guerra do Vietnã e o apoio mal disfarçado ao golpe e ao regime assassino do
Pinochet no Chile, entre outros exemplos de pragmatismo amoral que custaram
milhares de vidas. Ele foi o modelo para o “Dr. Strangelove” do filme do Kubrick,
interpretado pelo Peter Sellers com seu sotaque alemão intacto.
Mas
Kissinger chega aos 90 anos honrado e – na medida em que o Barack Obama tem se
mostrado ser também um pragmático em matéria de política externa – até
reabilitado entre os que antes o criticavam. Já se disse que quem sentar no
terraço do café “Les Deux Magots” por um tempo indeterminado, mais cedo ou mais
tarde verá passar pela calçada toda a humanidade.
O
mesmo exagero pode ser aplicado ao tratamento dado pela História aos seus
vilões mais notórios, que ela cedo ou tarde absolverá ou no mínimo justificará.
Átila, o Flagelo de Deus, trouxe uma cultura exótica, até então desconhecida,
às margens do Danúbio. Hitler, digam o que disserem, acabou com a maior
inflação do mundo e uniu o povo alemão. Na Itália de Mussolini, pela primeira
vez os trens andaram no horário. Calígula e Ricardo III foram dois
incompreendidos, só eram um pouco celerados. E: quem nos assegura que as
mulheres do Barba Azul não eram mesmo insuportáveis?
No
caso de Kissinger, a História dirá, quando a poeira do tempo baixar e permitir
uma visão mais clara do seu pragmatismo, que ele não foi totalmente letal. Foi
ele que arquitetou o encontro, antes impensável, de Nixon com Mao e uma
reavaliação da China Comunista como potência, pelo Ocidente, que mudou a
geopolítica e evitou, ou pelo menos adiou, o enfrentamento.
Credita-se
às suas reuniões secretas com os vietnamitas do Norte o encurtamento da guerra
que já tinha matado milhares. As vidas salvas por Henry Kissinger com suas
maquinações escondidas não foram tantas quanto as vidas destruídas pelo Dr.
Strangelove. Mas talvez tenha dado empate.
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