31
de maio de 2013 | N° 17449
DAVID
COIMBRA
O rei das empregadas
domésticas
As
pessoas não compreenderam o significado do que disse o Amado Batista. O Amado
Batista é um cantor que, há uns 20 ou 30 anos, era chamado de “rei das
empregadas domésticas”, num óbvio preconceito contra as empregadas domésticas e
numa óbvia sacanagem ao Amado Batista. Um de seus sucessos estrepitosos narrava
que, no hospital, na sala de cirurgia, pela vidraça ele via a sua amada
“sofrendo a sorrir”. E o sorriso aos poucos foi se desfazendo, então ele a viu
morrendo, sem poder se despedir.
Isso,
claro, porque naquele hospital as pessoas assistiam a cirurgias através de
vidraças, o que é bem raro hoje em dia.
Pois
agora, em entrevista a Marília Gabriela, Amado Batista contou que foi torturado
durante a repressão. Permaneceu dois meses preso e saiu tão traumatizado, que
chegou a pensar em tornar-se andarilho, mendigo, algo que o valha. Hoje, no
entanto, acredita que os torturadores ESTAVAM CERTOS, porque ele apoiava gente
que queria transformar o Brasil numa Cuba e por isso merecia um corretivo, tal
qual uma mãe aplica num filho desobediente, aquela história.
Marília
Gabriela ficou espantada. Os defensores da ditadura festejaram, afirmando que
até alguns torturados compreenderam que estavam errados. A maioria dos
brasileiros o censurou dizendo que Amado Batista não passa de um ingênuo que
nem sabia o que fazia naquele momento difícil do país.
Não
é nada disso. O que acontece é que Amado Batista PRECISA achar que os torturadores
tinham razão. É fundamental, para ele, acreditar nisso. É a forma que tem de
manter íntegra a sua estrutura psicológica. Porque, se Amado Batista reconhecer
que foi seviciado barbaramente POR NADA, que o Estado foi capaz de prendê-lo,
espancá-lo e humilhá-lo sem razão alguma, se Amado Batista compreender que foi
vítima de um crime monstruoso praticado pelas autoridades do país, em que irá
acreditar?
Como
é que homens podem cometer tais atrocidades com outros homens? Isso tem que ter
alguma razão. Não pode ser só injustiça crua. Não, não, se isso pode acontecer,
onde estão a Lei e o Estado? Onde está Deus?
Amado
Batista não é um idealista. Ele é um homem que canta a dor de ver sua amada
morrendo na sala de cirurgia. É um artista popular. Ou seja: também não tem a
ideologia a sustentá-lo. Não poderia se consolar cevando-se no ódio ao inimigo,
jamais acharia que lutava do lado do Bem contra as forças do Mal.
Então,
como explicar tamanha crueldade, tamanha injustiça? Se esse absurdo fosse
possível, Amado Batista não seria possível. Não haveria o rei das domésticas.
Haveria só o vagabundo anônimo, louco pelas ruas, como tantos outros.
A
tortura é tão vil por isso. Porque não machuca apenas o corpo do torturado.
Porque lhe mutila a alma até convencê-lo de que, se está sofrendo, é porque
merece.
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