21
de maio de 2013 | N° 17439
FABRÍCIO
CARPINEJAR
A alma do para-choque
Comprar
carro é enfrentar o pânico de batê-lo no primeiro dia.
Saio
da concessionária com o pé tremendo no acelerador, ligo o pisca-alerta 10
minutos antes do contorno. Ando realmente devagar como uma mula, tranco o
sinal, recebo buzinadas.
Reedito
um nervosismo de autoescola, erro as marchas, belisco o meio-fio, sequer mexo
nos botões do painel para não me distrair.
Pelo
impacto da emoção, desaprendo a dirigir.
Não é
só comigo que ocorre. É a maldição do primeiro dia da compra. Todos temem
arranhar o veículo na saída, estragar o investimento, manchar a reputação de
motorista sério. Pode ser piloto de Fórmula Truck ou um adolescente filhinho de
papai, o medo é contagioso e não escolhe as vítimas.
Quem
não pegou a chave no salão encerado e vacilou em pensamento: “Como vou tirá-lo
daqui com essa gente me olhando?”
Vem
uma mendicância, uma desvalia, uma orfandade com carro novo.
Será
uma humilhação acionar o seguro já nas horas iniciais. Imagina: nem mostramos
para a família e a novidade está sequelada. Ficaremos com a sensação de que não
merecemos o presente. É assinar o atestado de incompetência.
Carro
novo deveria vir do estacionamento direto para a garagem. Sem risco de
barbeiragem. Sem trânsito no meio do caminho.
Carro
novo é carro emprestado ainda. Será nosso depois que desaparecer o cheiro de
chiclete dos bancos.
Carro
novo é o autêntico teste de balizas. Um magneto de desastres. Um ímã de inveja.
Não tem como dissimular sua estreia, a lataria traz em si faróis de neblina.
Atravessamos
as ruas como se estivéssemos nus. Indefesos.
Sabe
aquela história da infância: quando tudo está perfeito alguma coisa de ruim
acontece? Introjetamos essa máxima sádica dos avós e boicotamos nossa
felicidade.
Acho
que os outros motoristas se sentem incitados a nos testar. Não abrem passagem,
não facilitam a troca de pista, motoqueiros surgem do nada, caminhões trancam
as vias no cimo da ladeira.
É o
equivalente adulto do sofrimento do tênis branco. Na escola, quando aparecia
com conga novinho, os colegas se aproximavam maldosamente para me batizar. Sempre
voltava da aula com o par sujo e emporcalhado. Impossível conservá-lo por 24h.
Quando
compro carro, não me arrisco mais, não barateio a paz.
Entendo
que a alegria é uma solidão. Nossa maior solidão.
Com
um veículo brilhando em casa, passo a andar de ônibus por uma semana, até vencer
o estágio probatório do acidente. Os filhos e a namorada juram que enlouqueci,
mas não vou dar mole ao olho gordo. Só pego o carro quando ultrapassar a zona
de risco de sete dias.
A
superstição é meu para-choque.
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