25
de maio de 2013 | N° 17443
NILSON SOUZA
Antropófagos
O
sapateiro foi bem além das chinelas e acabou deixando impressionante registro
histórico de uma viagem ao Brasil recém-descoberto. Falo do francês Jean de
Léry, que desembarcou no Rio de Janeiro em 1556 para fabricar sapatos na
chamada França Antártica. Na volta à Europa, escreveu uma verdadeira obra-prima
sobre a viagem, feita numa caravela precária e em condições de extremo risco.
Li sua aventura na última edição da Revista de História da Biblioteca Nacional e
ampliei um pouco mais o meu fascínio pelos exploradores do século 16, que
enfrentaram um mar de adversidades para conhecer e colonizar o novo mundo.
Léry
veio também para pregar o protestantismo e apaixonou-se pelos índios
tupinambás, nos quais reconhecia muito mais autenticidade, lealdade e franqueza
do que em seus próprios patrícios. Ele descreve os hábitos e costumes
rudimentares dos selvagens, mas espanta-se mesmo é com alguns franceses que já
conviviam com os índios e que, como eles, passaram a praticar o canibalismo.
Depois
de um ano entre os nativos, nosso escriba retornou com uma carga de pau-brasil
e alguns animais exóticos para exibir aos financiadores da viagem. Só que a
volta foi tão acidentada, que acabou rendendo a melhor e mais perturbadora
parte de seu relato. Em quatro meses de navegação, em grande parte com o barco
à deriva, a fome da tripulação apertou. Quando acabaram os mantimentos, sobrou
para os macacos e papagaios embarcados como mascotes.
Depois,
os marinheiros famintos comeram os ratos do navio, por fim as velas de sebo e
até mesmo solas de sapatos. Conta Léry: “Mal podíamos falar uns com os outros
sem nos agastarmos e, o que era pior, sem nos lançarmos olhares denunciadores
de nossa disposição antropofágica”. Estavam todos prestes a se entredevorar
quando avistaram a terra.
O
livro de Jean de Léry, História de uma Viagem Feita à Terra do Brasil, teve
sete edições em francês e algumas em latim, pois os relatos de viagem eram um
gênero literário muito apreciado na Europa no século dos descobrimentos. Deviam
ser mesmo. Quem não se deliciaria com detalhes daquelas fantásticas excursões
pelo mar bravio rumo a um mundo desconhecido? Gente corajosa, aquela. Era tanta
precariedade, falta de higiene, alimentos deteriorados, doenças e brutalidades,
que muitos aventureiros morriam antes de chegar ao destino. Mas foram esses
intrépidos que uniram a Europa à América e expandiram a civilização.
Nós,
os humanos, somos mesmo uns bichos estranhos e curiosos. Talvez sejamos todos
antropófagos por natureza, mas nossa fome de conhecimento chega a ser maior do
que o nosso instinto de sobrevivência.
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