16 de maio de 2013 | N°
17434
L.F. VERISSIMO
Os cães de guerra
A Convenção de Genebra pode ser
vista como um monumento à hipocrisia. Ela propõe regras para a barbárie e
infere que o que Shakespeare chamou de “os cães da guerra”, uma vez soltos,
podem ser controlados.
E que guerras podem ser
cavalheirescas, desde que regulamentadas. Um conceito que por pouco não morreu
na II Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, as convenções de Genebra, desde a
primeira, no século 19, tentam preservar o que, numa guerra, nos distingue de
cachorros raivosos. No caso, a hipocrisia é necessária. É outro nome para
civilização.
Uma das regras explícitas na
atual Convenção de Genebra diz respeito ao tratamento de prisioneiros. O
argumento principal de quem defende a repressão e seus excessos durante a
ditadura militar no Brasil é que se tratava de uma guerra aberta entre o regime
e seus contestadores armados, que sabiam no que estavam se metendo.
Só aos poucos estamos conhecendo
as atrocidades cometidas na luta contra a guerrilha no Araguaia, da qual a
maioria não sobreviveu e nem seus corpos foram encontrados. Mas, quanto ao que
aconteceu nas salas de tortura da repressão, não existem dúvidas ou apenas
suposições, está vivo na memória dos torturados e suas famílias.
Foi quando os cães sem controle
da guerra estraçalharam o que poderia haver de simples humanidade no tratamento
de prisioneiros, ou o simples respeito a regras convencionadas por um Estado
civilizado.
Se a discussão entre os que
sustentam que salvaram o Brasil com seus excessos e os que querem que o Brasil
conheça a verdade enterrada sem lápide daqueles tempos parece um diálogo de
surdos, o grande mudo desta história toda é a instituição militar, que nunca
fez uma autocrítica consequente, nunca desarquivou voluntariamente seus
arquivos ou colaborou nas investigações sobre o passado, o dela e o nosso, para
evitar a cobrança atual.
E o que foi feito não era
inevitável. Na Itália, por exemplo, na mesma época, o governo enfrentou uma
violenta contestação armada sem sacrificar um direito civil, ameaçar uma
instituição democrática ou recorrer ao seu próprio terror. Sem, enfim, soltar
os cachorros.
A diferença, claro, é que lá era
um governo legítimo.
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