02
de maio de 2013 | N° 17420
LETICIA
WIERZCHOWSKI
A Vila Adriana e o missal da minha
avó
Tenho
grande respeito por objetos. Coisas pequenas, aparentemente desimportantes, um
dia podem evocar todo o contexto de um período da nossa vida. Por isso, guardo
muita coisa – papéis, fotografias, desenhos infantis, dentes de leite, a
primeira meia, o minúsculo cardigã que teci por sobre a barriga enorme, azul da
cor do céu. Guardo conchas e guardo bilhetes.
Dos
arredores da Vila Adriana, uma vez eu trouxe uns pedregulhos que tenho numa
caixinha. Sobre a minha mesa de trabalho, está o antigo livro de orações da
minha avó Anna, com sua capa de couro negro e os desenhos em dourado – às
vezes, passo os dedos pelas páginas comidas pelos cupins, amareladas de tempo,
as frases escritas em polonês e incompreensíveis para mim, e fico pensando nas
horas em que a avó com este livro rezou, no que pediu e no que agradeceu; e
então me sinto inexplicavelmente perto dela, como me sinto perto do meu avô ao
folhear seus antigos documentos – fotos, recibos, suvenir da II Guerra, as suas
medalhas sobre o veludo.
Coisas...
Dou valor a elas, mas não esse valor óbvio, monetário – penso-as como marcas de
outrem, como recordações de um certo alguém que por aqui passou e ansiou,
sofreu e amou. Por isso, nunca menosprezo uma peça de tricô, um bordado, um
tapete. Coisas feitas à mão são as depositárias do tempo de uma pessoa – os
pensamentos de quem as fez ponto por ponto, de uma forma ou de outra, se gravam
entre as laçadas, nos volteios da agulha...
Por
isso, gosto de bordar para os recém-nascidos uma coisinha qualquer, flor ou
palavra, bicho ou árvore, gosto de enfiar a agulha no pano, de deixar a pegada
do fio, e atrás dela o meu ensejo, o bom pensamento que eu dedico àquela
criança, que seja feliz nesta vida – todo bordado é uma forma de oração.
Não
sei por que me peguei pensando nisso hoje, nas coisas que herdamos e nas coisas
que deixamos por aqui. Talvez porque vi o pingente da minha avó na gaveta de
joias. O pingente filigranado, com o seu pequeno rubi – quantas vezes esse
pingente arfou sobre o colo branco e morno da avó? Eu só o uso em ocasiões
especiais, como se convidasse Anna a ir comigo, quando quero comemorar ou
preciso da sua ajuda.
E lá
vem Sophia de Mello Breyner na minha cabeça – ela, que também amava a Vila
Adriana, e que escreveu este poema de igual nome: “...tempo da fina areia
agudamente medido, os séculos derrubaram estátuas e paredes, eu destruída serei
por breves anos. Mas de repente recupero a antiga divindade entre as colunas.”
Porque, sim, as coisas que fizemos e tocamos evocam um pouco de nós.
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