FERREIRA
GULLAR
De volta à avenida
O desfile é um acontecimento
único no mundo, demonstração da criatividade do brasileiro
Depois de vários anos, voltei, no
domingo de Carnaval, à passarela do samba, para assistir ao desfile das
escolas, a convite do amigo Eduardo Paes, prefeito do Rio. O que me afastara
desse desfile foi, entre muitas outras coisas, o som altíssimo dos
alto-falantes, que não apenas me deixava atordoado como me impedia de ouvir a
escola cantar.
Isso não mudou, até piorou.
A impressão que tive, desta vez,
foi que o som estava mais alto do que antes. Já temendo isso, levei algodão
para tapar os ouvidos e o fiz, mas não adiantou muito. Devo, porém, admitir
que, não os houvesse tapado, não teria ficado muito tempo ali.
Entendo que, dado o tamanho da
passarela, com vastas e altas arquibancadas, os alto-falantes tornam-se
necessários, uma vez que, sem eles, uma boa parte dos espectadores não seria
tocado mais intensamente pelo espetáculo.
Isso pode, porém, ser resolvido sem
ampliar o som de modo insuportável, com acontece agora. Bastaria erguer,
naquelas arquibancadas, postes com alto-falantes. Desse modo, creio, teríamos
um espetáculo menos estressante e mais fiel à natureza mesma do desfile que, no
passado, não contava com esse sistema de som.
O resultado é que, naquela época,
se ouvia os foliões cantando o samba, no momento mesmo em que passavam diante
de nós. Hoje, não se ouve voz alguma, a não ser a do puxador do samba, num
berreiro atordoante.
Neste domingo, houve um momento
em que o som dos alto-falantes falhou e foi uma maravilha: não durou dois
minutos, mas foi o suficiente para ouvirmos a escola cantando e, num impulso, o
público inteiro aplaudiu.
Mas nada tira o brilho desse
espetáculo único no mundo, que é o desfile das escolas de samba. Falo de
cadeira, porque comecei a assisti-lo em 1956, quando me enamorei da carioca
Thereza Aragão. O desfile ainda era na avenida Presidente Vargas, depois passou
para a Rio Branco e, finalmente, para a Marquês de Sapucaí, ainda com
arquibancadas desmontáveis, de madeira.
A passarela atual -mal apelidada
de sambódromo- foi invenção de Darcy Ribeiro, que convidou
Oscar Niemeyer para projetá-la.
Nenhum dos dois nunca havia assistido a um desfile.
A praça da Apoteose foi imaginada
por Darcy como o lugar onde o desfile de cada escola se encerraria como
apoteótico espetáculo de dança. Disse a ele que isso jamais aconteceria e não
aconteceu: a praça da Apoteose, apesar do nome pomposo, tornou-se o lugar de
dispersão, como tinha que ser.
O que piorou muito, nestes
últimos anos, foi a letra dos sambas-enredo. Isso já vinha ocorrendo e se
acentuou a partir do momento em que os traficantes de drogas passaram a mandar
nas escolas de samba e a impor seus comparsas como autores dos sambas. O
principal sintoma disso foi o aumento do número de parceiros: de um ou dois
compositores passaram a cinco, seis, sete.
Outro fator foi a necessidade de
desfilar com tempo determinado, o que provocou a aceleração do ritmo, e o samba
virou marcha. Este ano, à exceção talvez do samba da Vila Isabel, que teve
Martinho da Vila como um de seus autores, os outros são péssimos.
As letras, além de banais, são
desconexas, frases soltas, incongruentes, sem sentido algum. A melodia às vezes
escapa, mas nada que se compare aos sambas-enredo do passado. Tanto que ninguém
os decora nem os canta durante o desfile, como antigamente. O que salva o
desfile hoje em dia são as baterias que, quando passam, empolgam o público e o
fazem sambar.
De qualquer modo, o desfile das
escolas de samba é um acontecimento único no mundo, demonstração da
criatividade do povo brasileiro. Um espetáculo belo e empolgante, a que nenhum
outro se compara, realizado a céu aberto com a participação apaixonada da
plateia.
E há mais: a criatividade dos
carnavalescos que inventam alegorias belíssimas, em que a inventividade
plástica e cromática se soma muitas vezes à poesia e ao humor.
Fernando Pamplona e Arlindo
Rodrigues, nos anos 1960, revolucionaram as alegorias e as fantasias, abrindo
caminho para as inovações de um Paulo Barros, que hoje encanta o público com
suas invenções surpreendentes. Neste ano não deixou a desejar e, sim, pelo
contrário, arrebatou a plateia com um extraordinário navio fantasma, que me
pareceu alcançar o nível da melhor arte contemporânea.
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