O Jesus da
Nilo
Jesus
é um popular morador de rua da Nilo Peçanha
Foto: Adriana Franciosi / Agencia
RBS
Ele
não usa computador, mas já ultrapassou 900 fãs no Facebook. Não tem telefone,
mas se comunica muito bem. Não cumpre horários, mas andou tentando vender um
relógio dia desses. Acha "pouco" se candidatar a vereador, mas
desconhece a presidente Dilma. Não tem um tostão furado, mas gosta de escolher
marcas de chocolate e de roupa, como botas Timberland, calça Ellus de couro e
um casaco de nobuk com pele para enfrentar o inverno que vem aí. Fala de
"probleminhas" com a polícia, mas brigadianos descem de um carro só
para cumprimentá-lo.
Deixou
a escola há anos, mas sabe palavras em inglês e, a seu modo, se mantém
conectado com o que acontece no mundo, como o meteoro que caiu na Rússia. Tem
dúvidas se Deus criou o universo, mas traz o nome de Jesus.
Tantas
contradições carrega um popular morador de rua da Bela Vista, um dos bairros
mais nobres de Porto Alegre — o Jesus da Nilo, referência à mais importante
avenida da região. Mas por que, entre 11 mil habitantes, em um bairro marcado
por revendas de carro luxuosas, sofisticadas casas de móveis, condomínios
residenciais e prédios de escritório de alto padrão, cujo crescimento foi
puxado pelo Iguatemi há 30 anos, fui conversar logo com ele?
Porque
as histórias que há anos rodam no bairro mereciam explicação. Porque Porto
Alegre merecia conhecer a simpatia e a popularidade de Jesus, este homem
mirrado, magro, com poucos dentes na boca e olhos claros, que não para de
conversar e sorrir para quem passa pelas imediações da Nilo Peçanha com a João
Wallig.
Jesus,
hoje às vésperas de completar 47 anos, foi muito maltratado pela vida, mas
aparenta raiva alguma dela. Contam que ele morou no Menino Deus ao lado de duas
irmãs e um irmão, e que teria sido aluno do Anchieta e cursado Medicina – o que
Jorge Luiz (seu nome verdadeiro; o sobrenome ele não revela) nega. Certo é que
um maremoto familiar provocou a brusca guinada.
Foi
em fevereiro de 1992, quando morreu, ao lado dele, sua mãe, Maria Joana — o
pai, Francisco Laerte, já era falecido. No mesmo dia, o então funcionário da
associação dos servidores da Caixa Econômica Federal teria sido abandonado pela
mulher, Gislaine, que levou junto os filhos, Diogo e Renata.
—
Tive família e um trabalho que amava por 10 anos — relembra Jesus. — Quando
tudo se concretizou, acabou de uma maneira trágica e aí fiz a opção de descer
para conhecer a miséria, que me proporcionou uma força de viver. Poucos têm
coragem não só de conhecer o céu, mas também o inferno. Nem sei se vou para o
céu, não tenho certeza de minha missão. Alguém tem de salvar o mundo, mas, com
certeza, não serei eu.
É
difícil entender como um homem tão amigo dos jovens – a quem aconselha que
prestem bem atenção ao que falam os pais e contem sempre a verdade – possa ter
se afastado dos filhos. Ele confessa que foi difícil, mas "matou" o
amor que sentia. "Bonitos, sadios, inteligentes" é o pouco que avança
sobre Diogo e Renata. Do rompimento, veio a mudança de vida:
—
Sem prejudicar ninguém, buscar o que queria: Jesus e as gurias.
Ele
diz que são "29, 30 namoradas", a quem deixa claro: relação sem
cobranças e ciúme, só amor. Chegou com cinco horas e meia de atraso à
entrevista com ZH porque a noite anterior fora agitada, regada a "vodca,
scotch e cervejas", com as gurias, filmes e "dance house".
Após
horas à procura de Jesus, Bela finalmente conseguiu entrevistá-lo - Foto:
Adriana Franciosi
Jesus
também se vangloria dos amigos que conquistou no bairro. Um deles é Henrique,
um corredor de final de tarde que se intitula como o "melhor amigo" e
a quem ele retribui com um carinhoso "meu bruxo". De outro, o Aranha,
a quem viu crescer, se considera o padrinho espiritual do filho, que ele,
Jesus, chama de Spider Júnior. De um terceiro, ganhou o apelido. Diante da cena
– Jesus de modelo fotográfico na avenida —, as buzinas dos carros se sucedem:
—
Está famoso, hein, Jesus? — brincam os motoristas, os funcionários do posto de
gasolina, os do ponto final da lotação, os taxistas, o pessoal do laboratório
onde, no fundo do estacionamento, ele dorme em uma cama de papelões.
Dos
amigos, ganha também cerveja, salgadinhos, chocolates, bolacha recheada e
dinheiro, claro, como o de um senhor que, religiosamente, às sextas-feiras
passa cedo pelo posto de gasolina e lhe dá R$ 10.
—
Tiro R$ 1 mil por dia – diz, saboreando um valor que, segundos depois, baixa
para R$ 400 e, se a conversa continuasse nesse rumo, talvez terminasse em
dinheiro apenas suficiente para comprar comida e refrigerantes em um bar que
vende mais barato na Vila Jardim, para onde vai de carona nos ônibus.
Jesus
não é unanimidade. Dizem que ele foi afastado do ponto próximo ao Unificado por
pressão de pais que o acusavam de passar drogas aos filhos. Ele afirma ter
provado para "a polícia civil e militar" que não era traficante.
Admite transgressões com a bebida — "sou aspirado, turbinado e
nitrado" — e fala, sem saudade, do antigo ponto, onde contava aos jovens
ter jogado na escolinha de base do Inter, sem nunca perder a camisa 10. É
nessas ruas que sente o preconceito pelo homem maltrapilho, feio:
— Há
20 anos moro no bairro. Tem gente com inveja e ciúmes, pensam que sou do mal.
Tenho minhas particularidades, mas a minha maldição não é a droga, é o
chocolate. Existem drogas lícitas que são muito mais mortais, como os
antidepressivos.
Este
Forrest Gump da Zona Leste, que conta histórias e vai mudando de assunto de
minuto em minuto, tem seu QG principal em um orelhão nas redondezas. É ali,
"com um olho bem aberto, outro bem fechado", que ele se defende de eventuais
agressões, raras, e também do mau tempo. Foi lá que abrigou ZH no nosso
primeiro contato, quando Porto Alegre foi alvo de temporal.
Se
fala-se tanto hoje de fidelidade à marca, Jesus é um prato cheio. Conta que já
recebeu muitas, muitas mesmo, propostas para sair das ruas, mas não sai da Nilo
por nada. Acredita no gosto pela liberdade que esta "universidade da
vida", as ruas, lhe dá. Recusa os abrigos da cidade porque "não quer
tirar o espaço de ninguém". Agora, no Natal, Jesus desaparece, isola-se,
procura um local qualquer para se esconder de tudo e sofrer a melancolia que a
data traz para quem vive na solidão.
A
nossa conversa precisa terminar. Jesus gostou de posar para as dezenas de fotos
da Adriana, a quem chama da Audrey, e da filmagem do Felipe, não reclamou de
nada. Mas está muito inquieto, diz que precisa ajudar uma senhora com a
mudança, levar uns sofás e ganhar uns trocados.
—
Estou atrasado, Belinha. São sete e meia.
A
mesma Belinha que, momentos antes, ele chamava respeitosamente de senhora. Por
que mudou o tratamento?
— De
senhora à guriazinha para elevar a tua autoestima ao milésimo grau.
Se
eu tinha problemas de autoestima, esta lição de vida que ganhei com nossas
conversas certamente mudou algo em mim.
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