terça-feira, 26 de março de 2013


O Jesus da Nilo


Jesus é um popular morador de rua da Nilo Peçanha

Foto: Adriana Franciosi / Agencia RBS

Ele não usa computador, mas já ultrapassou 900 fãs no Facebook. Não tem telefone, mas se comunica muito bem. Não cumpre horários, mas andou tentando vender um relógio dia desses. Acha "pouco" se candidatar a vereador, mas desconhece a presidente Dilma. Não tem um tostão furado, mas gosta de escolher marcas de chocolate e de roupa, como botas Timberland, calça Ellus de couro e um casaco de nobuk com pele para enfrentar o inverno que vem aí. Fala de "probleminhas" com a polícia, mas brigadianos descem de um carro só para cumprimentá-lo.

Deixou a escola há anos, mas sabe palavras em inglês e, a seu modo, se mantém conectado com o que acontece no mundo, como o meteoro que caiu na Rússia. Tem dúvidas se Deus criou o universo, mas traz o nome de Jesus.

Tantas contradições carrega um popular morador de rua da Bela Vista, um dos bairros mais nobres de Porto Alegre — o Jesus da Nilo, referência à mais importante avenida da região. Mas por que, entre 11 mil habitantes, em um bairro marcado por revendas de carro luxuosas, sofisticadas casas de móveis, condomínios residenciais e prédios de escritório de alto padrão, cujo crescimento foi puxado pelo Iguatemi há 30 anos, fui conversar logo com ele?

Porque as histórias que há anos rodam no bairro mereciam explicação. Porque Porto Alegre merecia conhecer a simpatia e a popularidade de Jesus, este homem mirrado, magro, com poucos dentes na boca e olhos claros, que não para de conversar e sorrir para quem passa pelas imediações da Nilo Peçanha com a João Wallig.

Jesus, hoje às vésperas de completar 47 anos, foi muito maltratado pela vida, mas aparenta raiva alguma dela. Contam que ele morou no Menino Deus ao lado de duas irmãs e um irmão, e que teria sido aluno do Anchieta e cursado Medicina – o que Jorge Luiz (seu nome verdadeiro; o sobrenome ele não revela) nega. Certo é que um maremoto familiar provocou a brusca guinada.

Foi em fevereiro de 1992, quando morreu, ao lado dele, sua mãe, Maria Joana — o pai, Francisco Laerte, já era falecido. No mesmo dia, o então funcionário da associação dos servidores da Caixa Econômica Federal teria sido abandonado pela mulher, Gislaine, que levou junto os filhos, Diogo e Renata.

— Tive família e um trabalho que amava por 10 anos — relembra Jesus. — Quando tudo se concretizou, acabou de uma maneira trágica e aí fiz a opção de descer para conhecer a miséria, que me proporcionou uma força de viver. Poucos têm coragem não só de conhecer o céu, mas também o inferno. Nem sei se vou para o céu, não tenho certeza de minha missão. Alguém tem de salvar o mundo, mas, com certeza, não serei eu.

É difícil entender como um homem tão amigo dos jovens – a quem aconselha que prestem bem atenção ao que falam os pais e contem sempre a verdade – possa ter se afastado dos filhos. Ele confessa que foi difícil, mas "matou" o amor que sentia. "Bonitos, sadios, inteligentes" é o pouco que avança sobre Diogo e Renata. Do rompimento, veio a mudança de vida:

— Sem prejudicar ninguém, buscar o que queria: Jesus e as gurias.

Ele diz que são "29, 30 namoradas", a quem deixa claro: relação sem cobranças e ciúme, só amor. Chegou com cinco horas e meia de atraso à entrevista com ZH porque a noite anterior fora agitada, regada a "vodca, scotch e cervejas", com as gurias, filmes e "dance house".


Após horas à procura de Jesus, Bela finalmente conseguiu entrevistá-lo - Foto: Adriana Franciosi

Jesus também se vangloria dos amigos que conquistou no bairro. Um deles é Henrique, um corredor de final de tarde que se intitula como o "melhor amigo" e a quem ele retribui com um carinhoso "meu bruxo". De outro, o Aranha, a quem viu crescer, se considera o padrinho espiritual do filho, que ele, Jesus, chama de Spider Júnior. De um terceiro, ganhou o apelido. Diante da cena – Jesus de modelo fotográfico na avenida —, as buzinas dos carros se sucedem:

— Está famoso, hein, Jesus? — brincam os motoristas, os funcionários do posto de gasolina, os do ponto final da lotação, os taxistas, o pessoal do laboratório onde, no fundo do estacionamento, ele dorme em uma cama de papelões.

Dos amigos, ganha também cerveja, salgadinhos, chocolates, bolacha recheada e dinheiro, claro, como o de um senhor que, religiosamente, às sextas-feiras passa cedo pelo posto de gasolina e lhe dá R$ 10.

— Tiro R$ 1 mil por dia – diz, saboreando um valor que, segundos depois, baixa para R$ 400 e, se a conversa continuasse nesse rumo, talvez terminasse em dinheiro apenas suficiente para comprar comida e refrigerantes em um bar que vende mais barato na Vila Jardim, para onde vai de carona nos ônibus.

Jesus não é unanimidade. Dizem que ele foi afastado do ponto próximo ao Unificado por pressão de pais que o acusavam de passar drogas aos filhos. Ele afirma ter provado para "a polícia civil e militar" que não era traficante. Admite transgressões com a bebida — "sou aspirado, turbinado e nitrado" — e fala, sem saudade, do antigo ponto, onde contava aos jovens ter jogado na escolinha de base do Inter, sem nunca perder a camisa 10. É nessas ruas que sente o preconceito pelo homem maltrapilho, feio:

— Há 20 anos moro no bairro. Tem gente com inveja e ciúmes, pensam que sou do mal. Tenho minhas particularidades, mas a minha maldição não é a droga, é o chocolate. Existem drogas lícitas que são muito mais mortais, como os antidepressivos.

Este Forrest Gump da Zona Leste, que conta histórias e vai mudando de assunto de minuto em minuto, tem seu QG principal em um orelhão nas redondezas. É ali, "com um olho bem aberto, outro bem fechado", que ele se defende de eventuais agressões, raras, e também do mau tempo. Foi lá que abrigou ZH no nosso primeiro contato, quando Porto Alegre foi alvo de temporal.

Se fala-se tanto hoje de fidelidade à marca, Jesus é um prato cheio. Conta que já recebeu muitas, muitas mesmo, propostas para sair das ruas, mas não sai da Nilo por nada. Acredita no gosto pela liberdade que esta "universidade da vida", as ruas, lhe dá. Recusa os abrigos da cidade porque "não quer tirar o espaço de ninguém". Agora, no Natal, Jesus desaparece, isola-se, procura um local qualquer para se esconder de tudo e sofrer a melancolia que a data traz para quem vive na solidão.

A nossa conversa precisa terminar. Jesus gostou de posar para as dezenas de fotos da Adriana, a quem chama da Audrey, e da filmagem do Felipe, não reclamou de nada. Mas está muito inquieto, diz que precisa ajudar uma senhora com a mudança, levar uns sofás e ganhar uns trocados.

— Estou atrasado, Belinha. São sete e meia.

A mesma Belinha que, momentos antes, ele chamava respeitosamente de senhora. Por que mudou o tratamento?

— De senhora à guriazinha para elevar a tua autoestima ao milésimo grau.

Se eu tinha problemas de autoestima, esta lição de vida que ganhei com nossas conversas certamente mudou algo em mim.

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