IVAN
MARTINS
Capacidade de amar
Se
isso valesse nota, você receberia zero, cinco ou 10?
Esta
semana eu deparei com um assunto que muita gente adora, as vidas passadas. É o
tema do livro do meu amigo Walcyr Carrasco, conhecido autor de novelas e um dos
colunistas aqui da Época. O novo romance dele, Juntos para Sempre, tem como
personagem central um advogado que começa a tropeçar em memórias de outra existência.
Depois
de um sonho muitas vezes repetido, ele procura um terapeuta, faz uma regressão
de cinco séculos e inicia uma aventura que irá levá-lo à Espanha da Inquisição,
ao encontro de um grande amor. Abri o livro na cama, na noite de domingo, e não
consegui parar até a página 207, quando ele termina. Continuo sem acreditar em
vidas passadas, mas me diverti um bocado.
Um
aspecto menos divertido do livro do Walcyr, porém, continuou comigo depois da
leitura: seu personagem principal é incapaz de amar. É um homem de quase 40
anos que gosta da companhia das mulheres, acha-as atraentes, mas nunca
encontrou o sentimento profundo que justifique um compromisso. O livro explica
a situação e a resolve nos seus próprios termos, mas o assunto ficou me
incomodando. Há milhões de pessoas no mundo real que vivem assim, incapazes de
gostar profundamente.
Eu já
deparei com elas, você também. Há um número ainda maior de pessoas com uma
capacidade de amar muito pequena. Se formos honestos, aliás, teremos de olhar
para nós mesmos, e para a nossa surrada biografia, e perguntar até que ponto
somos capazes desse nobre sentimento. Eu temo que a resposta não seja agradável.
Minha
impressão é que cada um de nós tem uma certa capacidade de amar. A de alguns
será enorme, a de outros, mirradinha. Se isso parece estranho, compare com
outros sentimentos. Medo, por exemplo. Todo mundo sabe que há pessoas mais
medrosas e pessoas menos medrosas no mundo.
Ou
rancor. Há gente capaz de guardá-lo pela vida inteira, enquanto em outras ele
desaparece em poucos dias. O mesmo vale para quase tudo. Alegria, generosidade,
empatia. Cada um de nós parece dotado de diferentes quantidades de cada
sentimento. A proporção e a combinação deles determinam a nossa personalidade,
e a maneira como viveremos a nossa vida.
O
amor não é diferente. Na escala da capacidade de amar, cada um de nós merece
uma nota, que varia de 0 a 10. Claro, gostamos todos de pensar que somos 10,
mas os fatos muitas vezes não autorizam essa presunção. Quantas vezes você já amou
de maneira intensa, duradoura e – atenção – realista? Não vale paixão platônica,
não vale amor unilateral, paixonite de carnaval não conta. A gente só descobre
quanto é capaz de gostar quando o outro também gosta da gente e quando as duas
vidas de alguma forma se misturam. Antes disso o jogo ainda nem começou.
Se,
na vida real, você acha que é 10, mas a sua biografia sentimental não sugere
mais do que quatro, pode ser que a pessoa certa ainda não tenha aparecido – mas
isso pode ser apenas uma ilusão. É difícil imaginar que alguém que nunca foi
capaz de se entregar ou de criar um vínculo duradouro vai conseguir fazê-lo, de
uma hora para outra, porque apareceu a pessoa que tem a chave para os sentimentos
dela. Soa como pensamento mágico.
Na
vida real, as pessoas com grande capacidade de amar exercem esse dom ao longo
da vida. Elas amam diferentes pessoas, por diferentes razões, em diferentes
momentos. Ou amam a mesma pessoa desde sempre, o tempo todo. A capacidade de
gostar está nelas, não vem do outro. Elas amam amar, por assim dizer.
O
potencial para se vincular é delas – como é delas a alegria, a coragem, a
sensualidade.
A
gente pode imaginar que a capacidade de amar nasce pronta com cada um de nós,
mas eu prefiro pensar que a vida é quem molda os nossos sentimentos. As relações
em casa e no mundo influenciam, desde muito cedo, a nossa capacidade de sentir.
Sentir medo, sentir amor, sentir tristeza e alegria. Uma experiência ruim ali,
uma decepção acolá, a gente nem percebe e vai se fechando feito uma ostra,
desde pequeno. Quando cresce é que nota o que está fazendo falta, como a
capacidade de amar ou de ser feliz – que me parecem ser a mesmíssima coisa.
Há duas
maneiras de lidar com isso, eu acho. Uma é fatalista. A gente é o que é, ou é o
que foi feito de nós, e não há mudança possível. Vivemos com isso e ponto. A
outra, otimista, ou iluminista, sugere que saber é poder. Se você percebe que
tem dificuldade em gostar das pessoas, se na escala do amor você não passa de
cinco, tende mudar. Não é fácil, mas é possível.
O
tempo e o conhecimento melhoram a gente. Ao contrário das vidas passadas, a
vida presente é mutável, melhorável e solucionável. Adorável também, de várias
maneiras. De qualquer forma, tenho certeza que é a única, sem direito a segunda
chance. É nosso direito, portanto, nosso dever na verdade, vivê-la da melhor
forma possível – para nós e para os outros.
Ivan
Martins escreve às quartas-feiras
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