12 de março de 2013 | N°
17369
ARTIGOS - Milton R. Mendran
Moreira*
O divino Feliciano e os humanos
direitos
Dentre os grandes equívocos das
religiões, talvez o mais danoso ao ser humano é o de tomar como valores eternos
e imutáveis preceitos apenas compatíveis com o tempo em que promulgados. A
Bíblia judaico-cristã, por exemplo, está repleta de conteúdos claramente
preconceituosos que colidem frontalmente com modernos valores como liberdade e
igualdade.
Religiões são a expressão de
provisórias necessidades de sobrevivência e de preservação de valores, hábitos
e crenças de coletividades humanas postos em confronto com as de outros grupos.
Elas são necessariamente sectárias porque visam a proteger aquele agrupamento,
aquele gênero, aquela ideologia, aquele sistema de poder, contra interesses que
as possam desestabilizar. Religião e poder sempre tiveram íntima conexão,
porque as regras de conduta dela emanadas, se destituídas de cogência,
perderiam efetividade. Ou seja: não há forma de dar efetiva exequibilidade aos
valores e preceitos religiosos que não atribuindo sua origem à autoridade
máxima capaz de ser concebida pela mente humana: Deus. Quando transformados em
dogmas de fé, quando a promulgação deste ou daquele preceito logra se impor
como de efetiva origem divina, ele estará revestido de tudo aquilo que uma
norma exige para ser efetiva: seu poder de cogência.
A história da civilização não é
nada mais nada menos que o resultado do conflito entre esse pretenso poder
divino de ditar normas tidas como eternas e imutáveis e a saga humana de tomar
para si o múnus de legislar conforme as especificidades e necessidades de cada
tempo. Nessa guerra entre deuses e homens, estes últimos têm se valido de
algumas armas que só estágios mais recentes de seu processo evolutivo lhes disponibilizaram.
São coisas tais como razão se sobrepondo à fé, direitos humanos com prevalência
sobre prerrogativas do mais forte, direitos de minorias ganhando efetividade
legal contra privilégios de aristocracias raciais, econômicas e religiosas que
não os reconheciam e, mais que isso, os condenavam por manifestamente
contrários à presumível ordem divina.
O resultado desse conflito deu
origem ao que chamamos Estado democrático de direito. Sua implementação e
sedimentação na moderna sociedade se dão apesar da religião e, muitas vezes,
contra esta. Diga-se, entretanto, de passagem: contra a religião não significa
contra a espiritualidade. Quem, sendo capaz de fugir do dualismo
sagrado/profano, cultivar o entendimento de que a verdadeira essência do ser humano
reside na sua condição de espírito há de reconhecer, sempre, nas tendências
históricas do gênero humano e, logo, do espírito humano, a própria realização
de sua identidade plena com o divino.
Mesmo que reputemos como
insuperável o conflito entre religião e Estado democrático de direito, aquela
tem insistido em se valer deste para obstaculizar sua caminhada, para anular,
pelos próprios mecanismos por ele disponibilizados, o seu avanço. O episódio da
recente eleição de um certo pastor deputado Marco Feliciano para presidir, na
Câmara dos Deputados, a Comissão de Direitos Humanos, comprova isso.
Apesar de exibir uma biografia de
insuspeita submissão a um tipo de fé que confronta com os direitos humanos e
prega atitudes de franco boicote à vigência de alguns deles, Feliciano foi
guindado pela maioria de seus pares à presidência do órgão.
Que dizer da exitosa pretensão do
pastor deputado? Legítima, na medida em que, pela lógica interna de seu meio,
ele e seus eleitores se julgam partícipes de uma certa ordem divina, por
natureza incompatível com a ordem humana.
Que dizer, no entanto, de um
sistema formalmente comprometido com o Estado de direito quando ele próprio
unge justamente alguém com esse perfil para presidir uma comissão parlamentar e
permanente de direitos humanos? Mais do que incoerente, a atitude é autofágica.
No mínimo, nega e nulifica os próprios fundamentos de sua existência.
Tristemente, revela que se, formal e institucionalmente, pode-se falar em um
Estado democrático de direito, na prática ele não passa de um tênue projeto
humano que esbarra ainda nos caprichos e nos poderes dos deuses.
*ADVOGADO, JORNALISTA,
PRESIDENTE DO CENTRO CULTURAL ESPÍRITA DE PORTO ALEGRE
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