PASQUALE CIPRO NETO
'Rastreamento de ligações...'
Esse
desvio torna-se mais comum à medida que aumenta o número de 'penduricalhos' do
núcleo
NA
SEMANA passada, durante o julgamento de Mizael Bispo de Souza, um site de notícias
publicou o seguinte título: "Rastreamento de ligações de Mizael contrariam
suas falas".
Se o
caro leitor vasculhar questões elaboradas pelas bancas de importantes
vestibulares e concursos públicos do país (a começar pelo da Unicamp, por
exemplo), verá que volta e meia se pede a análise de fatos linguísticos como o
que se vê no título citado. Os itens da questão seriam mais ou menos estes: 1) Há
uma forma inadequada no trecho transcrito. Identifique-a. 2) Qual é a forma que
deveria ter sido empregada? 3) Há um motivo para esse tipo de desvio. Comente.
É bem
provável que o caro leitor e boa parte dos alunos que respondem a esse tipo de
questão acertem de bate-pronto os dois primeiros itens da questão; o terceiro
item talvez cause alguma dificuldade.
Pois
bem. A forma inadequada é "contrariam", que deveria ser substituída
por "contraria", já que o núcleo de "rastreamento de ligações"
(sujeito da oração) é "rastreamento", e não "ligações". Como
se sabe, grosso modo o verbo concorda com o núcleo do sujeito, e não com os
seus "penduricalhos".
E o
terceiro item, de longe o mais importante da questão? Qual será o motivo do "desvio"?
O motivo é simples: temos aí o fenômeno da contaminação ou o efeito da
proximidade etc., que explicam muitos dos fatos da língua. Quando diz ou
escreve "Rastreamento de ligações de Mizael contrariam suas falas", o
falante se deixa levar pela proximidade de "ligações" com o verbo, ou
seja, leva em conta o elemento mais próximo do verbo para estabelecer a concordância.
Isso
explica o desvio, mas não o legitima, como se depreende do próprio enunciado
proposto pelas bancas ("Há uma forma inadequada..."). De fato, no
padrão formal da língua, construções como a que analisamos não ocorrem ou, se/quando
ocorrem, decorrem de cochilos, aos quais todos estamos mais do que sujeitos.
Esse
desvio torna-se mais comum à medida que aumenta o número de "penduricalhos"
do núcleo do sujeito flexionados no plural. Se a pressa é o motor da redação,
então, a coisa se agrava. De fato, nos textos publicados pelos mais diversos
meios de comunicação, não faltam exemplos de construções como "O custo dos
alimentos industrializados produzidos com grãos subiram 10% no mês passado"
ou "O valor dos aluguéis de apartamentos pequenos situados nos bairros
centrais das grandes cidades brasileiras aumentaram muito no semestre passado".
O
caro leitor percebeu onde está o nó em cada uma das frases? Na primeira, o
redator se deixou levar pela interminável lista de "penduricalhos" do
núcleo do sujeito, todos no plural. É como se houvesse um diabinho na orelha do
redator repetindo sem parar algo como "Ponha o verbo no plural!". E o
diabinho ganha a parada. A forma inadequada é "subiram", que deve ser
trocada por "subiu", em concordância com "custo", núcleo do
sujeito: "O custo dos alimentos industrializados (...) subiu...".
No
segundo caso, o cochilo é semelhante, já que o verbo ("aumentaram") foi
indevidamente posto no plural, por influência da também enorme lista de "penduricalhos"
do núcleo do sujeito. A forma adequada é "aumentou", em sintonia com
o núcleo do sujeito ("valor"): "O valor dos aluguéis (...) aumentou...".
A
esta altura, talvez alguém esteja dizendo que esse tipo de desvio não muda o
preço do feijão, ou seja, não prejudica ou impede a compreensão do texto. Sim,
isso é fato, mas o emprego da forma adequada não revela apenas um mero acerto "gramatical";
revela uma das faces do domínio da estrutura da frase. Não me parece necessário
explicar os benefícios decorrentes desse domínio, certo? É isso.
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