24
de março de 2013 | N° 17381
VERISSIMO
Baboseiras
O
motoboy entregou o pacote de cartas e disse:
- Ele
falou que tinha resposta.
- Espera
- disse ela. E pôs-se a examinar as cartas. Procurava uma em especial, que não
encontrou. Fez um sinal para o motoboy aguardar enquanto telefonava.
- Alo...-
Amauri, cadê a carta do ursinho?
Era
uma das primeiras cartas que ela tinha lhe mandado. Ainda eram namorados. Uma
carta toda escrita como se fosse de uma criança para o seu ursinho de pelúcia.
- Eu
mandei. Não mandei? - Não. E se você não mandar a carta do ursinho eu não mando
as suas.
- Heleninha...
- Não
tem “Heleninha”, Amauri. Ou você manda todas as minhas cartas ou eu começo a
mostrar as suas. Sou capaz até de publicá-las. Quero ver como fica a sua reputação
no meio.
- Eu
pensei em guardar pelo menos uma carta sua, Heleninha.
- Logo
a mais ridícula? Devolve a minha carta, Amauri. Nosso trato foi esse.
Todas
as cartas.
- Deixa
eu ficar só com esta. É a minha favorita.
- Eu
sei o que você está pensando, Amauri. Quer ficar com a carta para me chantagear
depois.
- Chantagear,
Heleninha?! - Chantagear. Eu conheço você.
- Heleninha!
Eu acho esta carta linda. Uma lembrança do tempo em que a gente se amava.
- Não
banca o sentimental comigo, Amauri. Essa carta é só um exemplo das baboseiras
que e gente diz e escreve quando acha que o amor nunca vai acabar. Mas o amor
acaba e fica a baboseira. Me devolve essa carta, Amauri!
- Heleninha,
você lembra de como eu chamava você? Na cama?.- Eu não quero ouvir!
- Lembra?
Está certo, era baboseira. Mas era bonito. Era carinhoso. Eu era o seu ursinho
e você era a minha...
- Amauri,
manda essa carta ou eu publico as suas. Já sei exatamente para quem mandar a
primeira.
- Está
bem, Heleninha. Manda o motoboy de volta.
Zuneide
pensou: não dá mais. Morar nesta cidade, não dá mais. Não vejo mais o Ique, não
sei nada da vida dele. E todas as noites é este suplício, nunca sei se ele vai
voltar pra casa ou não, se está vivo ou morto.
Dizem
que morre um motoboy por dia na cidade. Todos os dias uma mãe perde um filho
nesta cidade. Se o Ique ainda fosse procurar outra coisa pra fazer. Mas não. Trata
aquela moto como se fosse um bicho de estimação. À noite, a moto fica ao lado
da cama dele. Dorme com ele. Vou tentar convencer o Ique a voltar para São
Carlos. Respirar outros ares. Antes que ele morra e me deixe.
- Não
dá mais, doutor Amauri. Esta cidade está me deixando maluco. Sabe que no outro
dia , quando me dei conta, estava correndo pela calçada e buzinando? A pé, na
calçada, e buzinando para os outros pedestres saírem da frente. Bi, bi, bi. Olha
que loucura.
- Você
acha que isso pode ter alguma coisa a ver com os problemas em casa. Com a
Mercedes?
- Não
sei. Nosso amor acabou, doutor. Não tem mais sexo, não tem mais nada. Na outra
noite eu chamei ela por um apelido que a gente usava quando era recém casados,
eu era Pimpão e ela era Pimpinha, e ela deu uma gargalhada. Não se lembrava
mais. E ela também está enlouquecendo, doutor. Agora deu para dizer que se eu não
comprar uma TV digital ela se mata. Vou dizer para ela vir consultar com o
senhor tam...
Tocou
o telefone e Amauri pediu licença para atender.
- Alo?
Sim, Helena. Não chegou? Eu mandei pelo motoboy perto do meio-dia. Mandei,
Helena. Por que eu iria mentir? Deve ter acontecido alguma coisa com o motoboy.
Só em
casa, depois de deixar o Ique no hospital, Zuneide descobriu a carta no bolso
do blusão do filho. Uma carta carinhosa, que começava assim: “Querido Ursinho”.
Ele tinha uma namorada e ela não sabia! O nome dela era Heleninha. Uma boa
menina, ingênua, pura, que obviamente o amava muito, a julgar pela carta. Preciso
encontrar um jeito de avisá-la de que o Ique teve um acidente, pensou Zuleide.
Será
uma maneira de conhece-la, também. De conversarmos, de combinarmos a ida deles
para São Carlos, para outros ares, depois do casamento. Zuneide leu e releu a
carta várias vezes. Que coisa bonita. Que coisa carinhosa. No dia seguinte ela
diria ao Ique que ainda não conhecia a Heleninha mas já gostava dela.
- Amauri,
você pediu. Vou começar a distribuir as suas cartas.
- Heleninha...-
Você mentiu. O tal moto boy não apareceu com a minha carta.
- Heleninha...-
Prepare-se para o pior, Amauri.
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