31
de março de 2013 | N° 17388
QUASE
PERFEITO | Fabrício Carpinejar
O oceano e uma
conchinha
Encontrei uma senhora com sacolas de mercado subindo
as escadas do hospital.
Perguntei
se poderia ajudar. Minha mãe sempre me ensinou que não custa nada ser educado.
Carreguei
as sacolas até o terceiro andar. Ela se despediu com um beijo em minha testa.
– Vá
com Deus, meu anjo.
Fiquei
levemente encabulado, minha testa estava úmida, e ela secou meu suor com seu
beijo.
Içara,
soube mais tarde, acompanhava seu marido André.
Ele
tem câncer em estado avançado, metástase nos ossos. Situação grave.
Os
dois partilham um casamento de 30 anos. São amigos de minha amiga Cíntia
Moscovich.
Já
testemunhei o casal abraçado, tomando vinho, comendo risoto, cantando músicas
em bar no Moinhos de Vento.
Não
lembrei de sua feição na hora. Quando ofereci ajuda, jurei que era uma
estranha.
Mostrava-se
toda abatida, acuada pela tristeza, as olheiras de coador de café.
Eu
me desculpei quando a revi subindo a ladeira da Ramiro Barcelos. Expliquei que
não a reconheci naquele dia.
Ela
concordou comigo.
–
Tampouco me reconheço, querido.
Sua
simplicidade, sua humildade, sua honestidade me desarmaram.
Já
não queria carregar suas sacolas, mas seus olhos.
Içara
sofre monstruosidades. Sofre essa viuvez devagar. Essa viuvez vindo. Essa
viuvez injusta informando seu coração pouco a pouco da tragédia.
Içara
vive sendo enganada pela esperança e não desiste de acordar, dormir, acordar,
dormir.
Com
a fé exausta, me encarou profundamente. Colocou as mãos em meus ombros e pediu
para que eu rezasse por uma coisa.
Uma
única coisa. Nem era capaz de pedir para seu marido melhorar. Nem era capaz de
suplicar o retorno da rotina.
Nem
era doida de encomendar milagre, de que eles possam viajar para Grécia, admirar
os afrescos da Itália, partilhar novamente de música, gastronomia e literatura.
Içara
pede uma só coisa, uma só coisinha: dormir mais uma noite de conchinha com seu
marido. Uma só noite soletrando a respiração do seu homem.
Uma
só noite com as pernas entrelaçadas, as cabeças encostadas para igual
horizonte. Uma só noite com a paz dos lençóis de casa e os travesseiros
lavados. Uma só noite despertando ao mesmo tempo, com a mesma vontade de mate e
varanda.
Só
dormir de conchinha mais uma vez. Uma noite fora do hospital, do soro, do medo
de morrer.
Uma
noite absolutamente normal. A normalidade no amor é a perfeição.
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