23
de março de 2013 | N° 17380
PESQUEIRO
| LUÍS AUGUSTO FISCHER
Barba ensopada de sangue
Hora
de reunir o pessoal para confirmar a profecia: Daniel Galera é um grande
escritor. Jovem ainda, já grande. Com três narrativas longas no currículo (Até o
Dia em que o Cão Morreu, 2003, novela; Mãos de Cavalo, 2006, romance;
Cordilheira, 2008, romance), mais um álbum em quadrinhos chamado Cachalote, 2010,
em parceria com Rafael Coutinho, chegamos agora a Barba Ensopada de Sangue, lançado
ano passado (Cia. das Letras, como os demais). Romance imperdível; é certo que
em suas páginas o leitor passará horas naquele interessante e desejado estado
de tensão, pela força dramática que consegue impor.
Não é
à toa que Galera tem ganhado muito espaço de divulgação como um darling de sua
geração e de sua forte editora, assina contratos para tradução a várias línguas,
entra em todos os rankings de apostas para novos no Brasil e na América Latina (está
na seleção brasileira escalada pela revista Granta, com circulação planetária, é
agora é o mais jovem escritor a representar o Brasil na Feira do Livro de
Frankfurt, Alemanha), enfim está sendo aplaudido em toda parte. Há motivos
consistentes para tal e tanto.
Já foi
saudada sua enorme capacidade descritiva. Exemplo: a certa altura do novo
romance, amigos, jovens (entre eles o protagonista), estão bebendo. Bebendo de
ficar bêbado, sabe como é? Aí descreve o narrador: “Estão enrolando as palavras
e desistindo de frases no meio do caminho.
Escuta
com clareza o que pretende dizer dentro da cabeça mas a boca deforma as
palavras na hora de enunciá-las”. Me parece perfeita a nomeação das reações dos
bebuns, como aquilo de desistir das frases no meio de sua formulação. Acertos
assim, e outros de maior extensão, se disseminam pelo livro e são um dos
encantos da leitura – daqueles que fazem a gente ler, se dar conta do
virtuosismo e dizer, silenciosamente, “É bem assim”.
Essa
qualidade depende de outros acertos, de outras marcas. Como outros
comentaristas já explicitaram, sua narrativa é fortemente masculina, exala
testosterona; com exceção do romance Cordilheira, protagonizado e narrado por
uma mulher (e talvez por isso a única obra de Galera que não me convenceu),
seus personagens são homens jovens, cuja existência é vitalmente corporal – os
sofrimentos relatados são vividos de modo intenso, o empenho físico ocupa o
centro das cenas e mesmo dos enredos. Essa marca se completa, no novo romance,
pela presença incontornável de uma cadela, pivô de toda a história.
Avô
valentão, pai suicida
Não
estragarei muito a surpresa dando um desenho geral do enredo. O romance abre
com uma conversa entre um pai e seu filho (este o protagonista, sem nome). A
relação não é lá grande coisa, como costuma ocorrer entre pais e filhos, mas
nesse caso o furo é bem mais embaixo: o pai anuncia que vai se matar. Não pede
consolo, nem cogita mudar de ideia; só pede um favor: que depois de sua morte o
filho trate de levar sua cadela de estimação para um destino piedoso, porque
ele, o pai, não terá coragem. O filho renega, se debate com o problema moral e
prático com que se defronta sem desejar; tudo é narrado já com o fio esticado –
impossível para o leitor ficar indiferente aos fatos, por causa da linguagem,
da economia de meios, do foco preciso não na psicologia profunda de cada um,
nem nas causas remotas do que ali acontece, mas nas ações, nos jeitos de olho e
mão, com a voz narrativa em terceira pessoa colada ao protagonista.
Também
já se disse que Galera guarda uma enorme afinidade (para não dizer dívida para)
com o escritor norte-americano Cormac McCarthy, autor de romances de grande força
descritiva, secos e densos, povoados de homens que arriscam o literal pescoço
em ações honradas, em meio a cenários interioranos, vastos, impositivos e
silenciosos. McCarthy e Galera prestam muita atenção aos processos de
amadurecimento dos personagens, o que confere aos romances um ar muito eficaz
de relato de aprendizado.
Na
conversa, outra ponta da trama é apresentada: diz o pai que seu pai, avô do
protagonista, havia morrido em Garopaba, em circunstâncias complicadas. Foi
morto por muita gente ao mesmo tempo, num baile em que, tendo faltado luz
momentaneamente, os assassinos se aproveitaram para tomar vingança daquele
sujeito meio arrogante, brigão, apelidado de Gaudério. Isso tudo, diz o pai, se
é que de fato morreu esse avô, porque a investigação policial foi fraca, o
enterro talvez tenha sido uma fraude.
Bem;
passada essa conversa, vamos encontrar o filho, no vigor de sua juventude, ex-atleta
de triatlo e professor de educação física, mudando-se para Garopaba,
naturalmente com a cadela, que ele não teve coragem de mandar sacrificar. Quer
ao mesmo tempo afastar-se da Porto Alegre em que sua vida transcorrera até então
– uma outra ponta do complexo enredo dá notícias de uma briga sem conciliação
com o irmão do protagonista, aparentemente o preferido dos pais, que casou com
ninguém menos que a namorada do nosso herói –, ficar sozinho com suas dores e,
quem sabe, desenrolar o fio da estranha morte do avô, naquele paraíso.
O
mergulho que o romance faz em Garopaba é outro motivo de grande acerto. Não
apenas pela paisagem, que é parte essencial da força narrativa, mas pela vida
social: Galera sabe nos transportar para o miolo de uma cidade esquisita, como
são talvez todas as cidades turísticas de ocupação sazonal – uns meses de
euforia e um largo ano de pasmaceira –, aproximando-nos de modo muito sensível
da mentalidade dos nativos, daquela mescla histórica que é a de todo o litoral
desde pelo menos Florianópolis para baixo, até o fim do Brasil, luso-brasileiros
e índios, vivendo em cidades de horizonte acanhado, com códigos de ética
restritos, e vendo passar a história, da época de fartura de pesca ao atual
momento, de turismo ecológico.
No
ano vivido em Garopaba acontece de tudo: amores, desamores, amizades, mas também
perigos verdadeiros, enfrentamentos com a natureza selvagem e com inimigos
locais. Na abordagem desse material, há no romance uns quantos trechos da mais
alta voltagem, daqueles que deixam o leitor siderado, sem conseguir largar a
leitura nem conciliar o sono. Certos personagens e cenas têm a força que a
grande literatura pode ter.
Maturidade
Uma
série de acertos como essa não pode impedir a percepção de alguns limites. Há dois
momentos de menor força, destoando do conjunto. E são dois momentos-chave. Um
acontece pelo meio do volume, quando o protagonista é reconhecido, meio
fantasmagoricamente, por um cantor nativista gaúcho em apresentação na cidade. A
sugestão é que o cantor viu nele uma reencarnação justamente do avô Gaudério,
inimigo do cantor décadas antes.
A
outra ocorre justamente no final. Após uma sequência narrativa que deixa o
leitor de coração na mão, acompanhando uma busca insana do protagonista (ele
tem a intuição de que certo monge, que vive isolado numa caverna à beira-mar,
pode ser seu próprio avô, que então não teria morrido!) que é, ao mesmo tempo,
uma descida aos infernos da natureza elementar (o mato, as rochas, sobretudo o
mar, numa cena de sobrevivência que me fez pensar nas dificuldades que terá o
diretor do filme a que o livro vai dar origem, certo),
isso
e mais uma luta física marcante (origem do título do livro), acompanhamos o
desfecho, que desce muito o tom e o tônus: o protagonista, ao final, é muito
mais o jovem adulto incompreendido e queridão, que não quer mal a ninguém e só faz
o bem, até mesmo a custo de seu corpo maltratado, do que o homem que acabamos
de ver em ação.
Mas
bem: Barba Ensopada de Sangue dá mostras da maturidade de um romancista, o que
não é pouca coisa. Romancista com gosto pelas trajetórias de vida, atento à tradição
realista mas informado das novidades.
Se
escapa alguma comiseração algo imatura, como nesse final, há elementos que
atestam maturidade rara; para não ir muito longe, eu assinalaria a linguagem (a
narração pratica um português sulino, um porto-alegrês fluente como nunca antes)
e a seriedade com que encara a passagem à condição madura (não há sofrimento
nem morte aleatórios). De lambuja, Galera escreveu um monumento ficcional sobre
o desafio, a bravata, a honra, essas experiências tão caras ao mundo do Sul do
Brasil e a todas as experiências masculinas vitais mundo afora.
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