Inteligência/Roger
Cohen - Londres
Chávez e a sedução pela
ditadura
Hugo
Chávez, um deus socialista do século 21 destinado a ser embalsamado como seus
antecessores do século 20 de Moscou e Pequim, era um homem do povo a sua
própria moda. Ele chegou ao poder na Venezuela e ganhou sucessivas eleições
como a personificação do mestiço humilde que desafiou o privilégio
entrincheirado da oligarquia burguesa.
A
ineficiência do regime Chávez era prodigiosa -ele conseguiu deixar as finanças
de seu país em ruínas, apesar das crescentes receitas do petróleo, e enriqueceu
sua clique revolucionária por meio de acordos vantajosos. Seu compromisso com a
causa do "pueblo" (pelo menos sua saúde e educação) sempre foi a
parte principal de sua atração.
No
entanto, esse homem da esquerda e do povo mal conseguia encontrar um ditador
que não considerasse sedutor. Ele foi um forte defensor de Bashar Assad, o
déspota sírio cuja sanha já custou a vida de 70 mil de seus conterrâneos. Ele
apoiou Muammar Gaddafi da Líbia até o fim. Aliou-se a Robert Mugabe em seu
saque ao povo do Zimbábue.
Quando
milhões de iranianos se ergueram em 2009 em protesto contra uma eleição presidencial
roubada, Chávez se manteve firme ao lado de Mahmoud Ahmadinejad, enquanto a
revolta era reprimida com grande brutalidade. Diante da opção entre o
liberalismo britânico e a repressão bielorrussa, Chávez não hesitou.
É
claro que Chávez também foi um fiel aliado de Fidel Castro, seu mentor
latino-americano, mas pelo menos com Castro ele compartilhava ideias
socialistas, além de uma trama de interesses econômicos, incluindo um original
intercâmbio de petróleo por médicos. Com outros colegas ditatoriais ele tinha
pouco em comum, pelo menos na superfície.
Mas
é claro que havia alguma ideologia unificadora em ação que superava o respeito
declarado por Chávez à vontade popular: uma determinação comum em confrontar e
resistir aos Estados Unidos e seus aliados em todas as suas manifestações.
Chávez
foi o ideólogo antiamericano por excelência. Certa vez o escutei durante horas
em Caracas enquanto ele discorria de maneira interminável, mas às vezes
fascinante, sobre o tema do caubói predador do norte.
Para
Chávez e todos esses homens-fortes de épocas recentes, confrontar os EUA e sua
ordem econômica neoliberal -assim como suas aventuras militares pós-11 de
Setembro- era muito mais importante, afinal, que a liberdade, a imprensa livre,
o governo representativo ou as aspirações da população.
Chávez
foi um homem profundamente antiliberal fantasiado de "libertador" de
seu povo.
Nisso,
deve-se dizer, ele não foi o único. O desacordo civilizado e as instituições
que o permitem e garantem -o núcleo de uma ordem liberal- não são muito
apreciados em uma era em que os que gritam mais alto e com mais firmeza tendem
a conseguir o que querem.
Para
Chávez e sua espécie, um liberal não passava de um imperialista ocidental em
trajes inofensivos.
A
posição do "intervencionista liberal" (do tipo que apoiou as
intervenções ocidentais na Bósnia ou na Líbia) ou do "sionista
liberal" (do tipo que apoia uma solução de dois Estados na Terra Santa)
tornou-se cada vez mais solitária. A sociedade liberal -e não conheço nenhum
tipo melhor- é um apelo menos eficaz do que o ódio dos déspotas pela
"América".
A
invasão do Iraque pelos EUA, que completou dez anos neste mês, a guerra
interminável no Afeganistão e o contágio global da fusão financeira de Wall
Street em 2008 contribuíram para essa síndrome anti-EUA no estilo Chávez.
Seja
qual for sua origem, é uma patologia perigosa: ela fornece o disfarce para a
repressão que com frequência se torna brutal.
O
assim chamado "povo" tem outras ideias, como os árabes que se
levantaram contra o despotismo nos últimos dois anos. Sua busca foi pela
liberdade -a liberdade de finalmente escrever e dizer o que quiser, agir para
mudar sua vida e se incluir no mundo moderno.
Isso
não significa que eles queiram sociedades clones ou lacaias dos EUA e seus aliados.
Mas eles se recusam a continuar vivendo em sociedades retraídas e manipuladas,
dominadas pelo medo de inimigos imaginários.
Chávez
escolheu seus amigos déspotas porque acreditava que a principal divisão do
mundo não fosse entre ditadura e democracia, mas entre países subordinados aos
EUA e países independentes deles. Seu ódio obsessivo a Washington o levou
diversas vezes a abraçar os poderosos contra os fracos, o caudilho contra o
povo. O que foi, ao mesmo tempo, sua mais profunda traição e um sintoma de seu
antiliberalismo central.
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