sábado, 16 de março de 2013



17 de março de 2013 | N° 17374
MARTHA MEDEIROS

A bota amarela

Houve um tempo que eu detestava roupas amarelas. O que não deixava de ser estranho, uma vez que essa cor tem uma energia que combina com meu estado de espírito. Mas me fechei para o amarelo de uma forma ranzinza e implicante, e nesse fechamento creio que enclausurei uma parte importante de mim que passou a fazer falta. A parte em que deixo de imitar a mim mesma a fim de permitir que eu me surpreenda.

Explico: durante a vida a gente vai assimilando ideias, cultivando gostos, estabelecendo maneiras de ser, até que vira um ser humano aparentemente acabado: sou desse jeito, prefiro isso, não suporto aquilo, minha turma é essa, daqui não saio. Instalamo-nos numa bolha confortável e já temos as respostas prontas para quem vier bater à nossa porta.

Na hora de enfrentar as demandas do dia a dia, nada mais simples: é só imitar aquela criatura com a qual nos habituamos. Já temos o manual de instruções decorado. Sou desse jeito, prefiro isso, não suporto aquilo etc, etc.

Até que chega um momento em que você se dá conta de que parece um boneco em que deram corda e que vive repetindo as mesmas frases, os mesmos gestos, sem nenhuma reflexão a respeito. Está há anos imitando a si mesmo, pois é fácil e rápido, um modelo pra lá de conhecido. No entanto, você tem uma reserva de imaginação, ainda sem uso, que deve ser acionada para o que, às vezes, se faz necessário: rasgar o manual e escrever uma nova história a partir do zero.

Pois então estava eu, caminhando por uma calçada, de bobeira, quando passei por uma vitrine e vi um desses manequins sem rosto vestindo um casaco colorido, uma calça jeans e uma bota amarela. Meu olhar de Cyborg (ninguém foi criança impunemente) focalizou a bota, deu-lhe ampliação e fez com que ela se destacasse do conjunto.

Eu não enxergava mais nada, só aquela bota amarela. E, como num transe, entrei na loja, pedi meu número e provei a bota, sem ter a mínima ideia onde, quando e com que coragem a usaria um dia. Eu simplesmente saquei meu cartão de crédito e comprei a metáfora da vida que eu pretendia levar dali por diante.

Se não usá-la, poderei colocá-la numa prateleira da parede para que ela me lembre de que não precisamos ter uma cor preferida, que nossas convicções podem ser reavaliadas sem prejuízo à nossa imagem, que o que a gente gostava antes não precisa ser aniquilado em detrimento de nossos novos e frívolos amores, que ninguém perderá sua essência só porque resolveu variar de personagem.

Insistir nas próprias convicções é um perigo. A certeza nem sempre é amiga da sanidade. Se eu fosse uma fashionista, ninguém estranharia, mas não sendo, há quem vá me achar meio maluca desfilando de bota amarela por aí. Não importa. Ela estará me conduzindo justamente ao saudável mundo do desapego de nossas crenças.

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