17
de março de 2013 | N° 17374
MARTHA
MEDEIROS
A bota
amarela
Houve um tempo que eu detestava roupas amarelas. O
que não deixava de ser estranho, uma vez que essa cor tem uma energia que
combina com meu estado de espírito. Mas me fechei para o amarelo de uma forma
ranzinza e implicante, e nesse fechamento creio que enclausurei uma parte
importante de mim que passou a fazer falta. A parte em que deixo de imitar a
mim mesma a fim de permitir que eu me surpreenda.
Explico:
durante a vida a gente vai assimilando ideias, cultivando gostos, estabelecendo
maneiras de ser, até que vira um ser humano aparentemente acabado: sou desse
jeito, prefiro isso, não suporto aquilo, minha turma é essa, daqui não saio.
Instalamo-nos numa bolha confortável e já temos as respostas prontas para quem
vier bater à nossa porta.
Na
hora de enfrentar as demandas do dia a dia, nada mais simples: é só imitar
aquela criatura com a qual nos habituamos. Já temos o manual de instruções
decorado. Sou desse jeito, prefiro isso, não suporto aquilo etc, etc.
Até
que chega um momento em que você se dá conta de que parece um boneco em que
deram corda e que vive repetindo as mesmas frases, os mesmos gestos, sem
nenhuma reflexão a respeito. Está há anos imitando a si mesmo, pois é fácil e
rápido, um modelo pra lá de conhecido. No entanto, você tem uma reserva de
imaginação, ainda sem uso, que deve ser acionada para o que, às vezes, se faz
necessário: rasgar o manual e escrever uma nova história a partir do zero.
Pois
então estava eu, caminhando por uma calçada, de bobeira, quando passei por uma
vitrine e vi um desses manequins sem rosto vestindo um casaco colorido, uma
calça jeans e uma bota amarela. Meu olhar de Cyborg (ninguém foi criança
impunemente) focalizou a bota, deu-lhe ampliação e fez com que ela se
destacasse do conjunto.
Eu
não enxergava mais nada, só aquela bota amarela. E, como num transe, entrei na
loja, pedi meu número e provei a bota, sem ter a mínima ideia onde, quando e
com que coragem a usaria um dia. Eu simplesmente saquei meu cartão de crédito e
comprei a metáfora da vida que eu pretendia levar dali por diante.
Se
não usá-la, poderei colocá-la numa prateleira da parede para que ela me lembre
de que não precisamos ter uma cor preferida, que nossas convicções podem ser
reavaliadas sem prejuízo à nossa imagem, que o que a gente gostava antes não
precisa ser aniquilado em detrimento de nossos novos e frívolos amores, que
ninguém perderá sua essência só porque resolveu variar de personagem.
Insistir
nas próprias convicções é um perigo. A certeza nem sempre é amiga da sanidade.
Se eu fosse uma fashionista, ninguém estranharia, mas não sendo, há quem vá me
achar meio maluca desfilando de bota amarela por aí. Não importa. Ela estará me
conduzindo justamente ao saudável mundo do desapego de nossas crenças.
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