FERREIRA
GULLAR
Chovendo no molhado
A
Mona Lisa não precisa do Louvre para ser obra de arte; é o Louvre que precisa
dela para ser museu
Falando
com sinceridade: você acha mesmo que pôr cocô numa lata é fazer obra de arte?
Teve um cara que fez isso e o que ele quis dizer, ao mandar a latinha com merda
para uma galeria de arte, é que arte é merda, certo? Ele estava copiando Marcel
Duchamp.
Tratava-se
de um protesto? Sim, pode ser, mas protestar não é, por si só, fazer arte. Aliás,
há muita poesia de protesto que de poesia não tem nada. É que arte de protesto,
antes de tudo, tem que ser arte.
É verdade
que o conceito de arte foi mistificado e houve época mesmo em que a habilidade
técnica era tida como arte. Mas tudo isso foi posto abaixo pelos verdadeiros
artistas. Aliás, a revolução estética, que marcou o início da arte moderna,
consistiu precisamente em repelir essa falsa concepção de arte.
Picasso
disse certa vez: "Estou pintando uma tela, vou pôr ali um azul; se não
tenho azul, ponho um verde". Essa frase, que pode parecer uma piada, é de
fato a desmistificação da atividade artística. O que ele disse, de fato, foi
que a criação artística nasce de um jogo de acaso e necessidade.
É que,
ao iniciar o quadro, a tela está em branco, tudo ali pode acontecer, mas, desde
o momento em que se lança a primeira pincelada, reduz-se a probabilidade e começa
o processo que irá tornando necessário o que era mero acaso. Isso porque a
pintura é uma linguagem, com leis e exigências, que não estão escritas, em função
das quais a obra ganha coerência e significação.
Expressão,
em princípio, tudo é, já que o que existe expressa algo, tem um significado,
seja um gato, uma pedra, uma mancha na parede. Mas são diferentes o significado
natural que cada coisa tem e o significado criado pelo músico ao trabalhar a
linguagem musical, pelo poeta ao trabalhar a linguagem literária, pelo pintor
ao trabalhar a linguagem pictórica.
Em
suma, ainda que você admita que pôr casais nus num museu expresse algo, não
negará que aqueles casais não são obra de nenhum artista como os quadros que
estão ali nas paredes. Qualquer pessoa que tenha um mínimo conhecimento de arte
sabe que a expressividade de uma obra artística é resultado da capacidade do
autor de lidar com os elementos constitutivos de sua linguagem: a linha, a
forma, as cores, a matéria pictórica, incutindo-lhes uma significação que só existirá
ali.
Exemplo:
a noite estrelada que Van Gogh pintou é uma invenção única dele que a linguagem
da arte possibilita. Não é simplesmente uma ideia, mas o produto de uma ação
manual, técnica e semântica no âmbito de um universo linguístico chamado
pintura.
É diferente
de simplesmente ter uma ideia, cuja criação em nada depende de você ter ou não
capacidade técnica de realizá-la ou o domínio de uma linguagem, qualquer que
seja. O artista conceitual não precisa saber fazer, não precisa fazer e, como não
possui linguagem, usa o que já existe e que não foi ele quem fez.
De
onde vem então o significado do que não foi feito? Como já disse, tudo o que
existe significa, o que não quer dizer que seja uma linguagem, já que esta
implica significados inventados por nós. Por isso mesmo, os povos primitivos
viam numa montanha um deus ou um demônio.
A
significação de uma coisa, um corpo, um objeto, decorre de sua inserção no
sistema simbólico humano. Por exemplo, estar nu em um museu tem significação
diferente de estar nu em seu quarto.
A
diferença óbvia é que o museu é um lugar público, o que torna a nudez chocante.
Então, pergunto, por que ficar nu no museu é obra de arte e, no quarto, não?
A
resposta obvia é que, para tornar-se "arte", o nu necessita da
instituição museu, ou seja, seu significado não é inerente a ele e, sim, à situação
em que se encontra.
Isso
o torna essencialmente diverso do que conhecemos como obra de arte, cujo
significado estético só existe nela, na obra e, mais que isso, é expressão de
uma linguagem que é anterior a ela e que se amplia nela e em cada nova obra de
que o artista crie. A Mona Lisa não precisa do Louvre para ser obra de arte; é o
Louvre que precisa dela para ser museu.
O
belo volume em que a editora Bem-Te-Vi reuniu toda a poesia de Lélia Coelho
Frota constitui uma justa homenagem a seu talento, a sua inteligência e sua
admirável sensibilidade.
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