14 de março de 2013 | N°
17371
L. F. VERISSIMO
Sem exagero
Fizeram um encontro meu com o
Abel Braga quando ele estava treinando o Internacional, e descobrimos uma
coincidência. O primeiro jogo que ele viu no Maracanã, ainda garoto, ao lado do
pai, foi o último que eu vi, já nada garoto, perto de me casar. Santos e Milan,
novembro de 1963.
Até então, eu não perdia jogo do
Botafogo, da Seleção ou do Santos no Maracanã. Morava no Leme e pegava o ônibus
Leme-Triagem, atravessava a pé a Quinta da Boa Vista e ia para a arquibancada.
Sim, o Santos jogava suas partidas decisivas no Maracanã. O Maracanã enchia
para ver o Pelé. Mas, no jogo que o Abel, eu e uma multidão vimos, o Pelé não
jogou. O herói da noite foi o Almir. O Pelé da noite foi o Almir.
Volta e meia, vem a discussão.
Pelé era mesmo tudo que se diz dele? O Maradona era melhor? O Messi é melhor?
Meu testemunho não interessa. Ele reinou quando já havia videoteipe. Seus
feitos estão bem documentados. Você não precisa recorrer à literatura para
contar às crianças como era o seu futebol – ao contrário das façanhas de gente
como Ademir e Zizinho, que ficaram na memória dos velhos e em filmes
desbotados, nenhuma das duas coisas muito confiáveis.
E o grande mérito de Pelé é que
ele resiste ao videoteipe completo. Se tivesse ficado só em filme, só os seus
grandes momentos estariam registrados. Já o videoteipe completo traz tudo: o
passe errado, o tombo sentado, a chuteira desamarrada. E Pelé resiste aos
detalhes. Ele era bom até amarrando a chuteira.
Com o futebol aconteceu um pouco
do que aconteceu com a guerra: quanto mais realista a sua reprodução, mais
difícil romanceá-la. Quando só se viam cenas de guerra em quadros épicos em que
até os cadáveres colaboravam na composição, ela podia ser glorificada sem
contestações, salvo as estéticas.
Fora as gravuras de Goya, não se
conhece um quadro sobre a guerra, antes da invenção da fotografia, que não a
exaltasse. A fotografia primitiva roubou da guerra a cor e a composição
artística , o filme e o teipe dinamizaram o horror, o “zoom” destacou o
detalhe. Ainda há quem ame a guerra, mas nunca mais a percepção dela foi a
mesma.
E o futebol também mudou, o que
só aumentou a dificuldade em julgar jogadores antigos pelas precárias imagens
que ficaram deles e pelo que contam – com o inevitável toque romântico do
exagero – os que os viram jogar.
Algumas das grandes reputações do
passado sobreviveriam aos cinco no meio e à marcação no campo todo de hoje?
Pelé pegou o começo do futebol sem espaço. Não só se impôs como deixou o
exemplo de como sobreviver no sufoco.
A extrema objetividade (nunca se
viu um drible do Pelé apenas pela satisfação do drible, era sempre um espaço
conquistado), a antecipação da jogada seguinte antes mesmo da jogada presente
começar, a solidariedade, a simplicidade. Melhor do que Maradona, melhor do que
Messi, e dou fé.
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