15
de março de 2013 | N° 17372
CELSO GUTFREIND
Cutucando Shakespeare
Inventar
é diferente de mentir. A mentira restringe; a invenção transcende. A mentira
pensa em si; a invenção sente o outro. A mentira encerra o assunto; a invenção
abre. Pode não se ver de longe e nem se ouvir na hora, mas chega o dia em que a
verdade vigora. No amor, mais ainda. Amantes inventam. Políticos mentem.
São
tendências, há exceções, os dias não se repetem. Shakespeare inventava. Além de
aproximadamente 38 peças, escreveu 154 sonetos. A maioria para convencer um
amigo a casar-se e ter filhos. O motivo circunstancial não impediu que fossem
magníficos. Dedicou a sobra – em torno de 30 – ao grande amor.
A
“dama morena”, ao que consta, tripudiou o artista enquanto homem. Achava-o feio
e inferior. Ela o traía até com o amigo mencionado. O que fazia Shakespeare?
Tentava o suicídio? Matava o inimigo? Morria de verdade? Shakespeare inventava.
Inventava sonetos. Sonetos de amor. De amor completo com rima, ódio, esperança:
De almas sinceras a união sincera/Nada há que impeça. Amor não é amor/Se quando
encontra obstáculos se altera/Ou se vacila ao mínimo tremor.
Shakespeare
não vacilava. Do obstáculo fazia a novidade, outro soneto, um retrato em branco
e preto para colorir a falta. O avesso. O negativo. A outra vida, imaginada,
positiva. Certa psicologia o chamou de masoquista. Difícil contestá-la. Certa
prosa diagnosticou amor bruxo e bandido, sofrimento e não amor. Difícil
rebatê-la. Depois da invenção, a língua de Shakespeare estava aberta a todas as
línguas. O ritmo acolhia qualquer comentário. Mas, a cada estrofe, inventava
conteúdos. Amante, não mentia: amava.
Há
quem encontre condições menos desfavoráveis e não ame um dia sequer. Ou ame
mais ou menos. Ou menos e não expresse. Não experimente, não registre. Ou o
faça com forma mínima e pouca intensidade, puxado o freio de alma. Para não
arriscar os efeitos colaterais de um sofrimento, não conte às ganhas, não ame
em cheio. Para não morrer, não viva.
Shakespeare
amou por muitos dias. Da vivência deixou uma trintena de peças e um punhado de
poemas: Mas em ti o verão será eterno,/E a beleza que tens não perderás;/Nem
chegarás da morte ao triste inverno:/Nestas linhas com o tempo crescerás./E
enquanto nesta terra houver um ser,/Meus versos vivos te farão viver.
Fizeram.
Mas a vida é provisória, o tempo tudo desfaz. Tem menos trabalho com a perna
curta da mentira e bem mais com o corpo largo da invenção. Shakespeare não era
mentiroso. Era amante, inventor: Amor não se transforma de hora em hora,/Antes
se afirma, para a eternidade.
Também
inventou esta. Não mentiu.
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