03 de março de 2013 | N°
17360
VERISSIMO
Bolero
“Dormir avec vous madame
Dormir avec vous
C´est um merveilleux programe
Demandant surtout
Um endroit discret madame”
Charles
Aznavour
Enfim um bolero, nest pas madame?
Fui eu que subornei a orquestra. Agora podemos dançar juntos, eu sentindo os seus
seios contra o meu peito, você sentindo as minhas medalhas. O bolero favorece a
minha perna mecânica, ao contrário do tango, que também cultivo, mas só em
teoria, senão eu caio na primeira rabanada.
O bolero também nos permite falar
um no ouvido do outro, ao contrário dessas danças modernas, nas quais a única
comunicação possível entre os pares é o sinal metafórico. Nenhuma conversa é
tão privada e discreta quanto a de um homem e uma mulher dançando um bolero, o
homem cuidando para não engatar os lábios num brinco ao mordiscar o lóbulo,
onde a mulher é mais tenra, a mulher se permitindo dizer baixinho tudo que
jamais diria em público, principalmente ao alcance dos ouvidos do marido.
Existe um marido, pois não, madame?
Deve haver um marido, senão nada disto
este salão, este bolero, seus seios contra o meu peito e a minha ereção tem
sentido. O essencial numa sedução não é o sedutor nem a seduzida, é o marido.
Todo o drama, toda a aventura, toda a glória e o prazer de uma sedução está
centralizada no marido enganado.
Um caso sem marido é como um
merengue sem recheio, uma casca farofenta encobrindo o nada. Seu marido está
nos vendo? Está seguindo nossos passos, salivando como um cão raivoso? Sinto
seus olhos na minha nuca, talvez medindo-a para um golpe de cutelo, como o que
mata os touros que se recusam a morrer pela espada. Sim, também já fui
toureiro.
O que a gente não faz para
impressioná-las, hein madame? Posso desafiar o marido para um duelo, se lhe
convier. Sim, sou do tempo dos duelos, quando a honra se lavava com sangue, nem
que fosse apenas o sangue de um arranhão. Madame já adivinhou que sou um homem
antigo.
Para mim, nada é mais apropriado
do que um bolero acabar num duelo. Posso mandar seu marido para um hospital.
Assim nem ele ficaria sem sua honra nem nós ficaríamos sem um marido enganado
vivo para apimentar nossa união.
Como eu perdi minha perna? Foi
numa dessas guerras, não me lembro mais qual. Foi em Waterloo, foi no Somme,
foi no desembarque em Omaha Beach, quem se lembra? E tudo para impressioná-la,
madame. Eu ainda não a conhecia, nem sentira os seus seios contra o meu peito,
e já estava matando e morrendo e construindo civilizações para impressioná-la.
Esta sedução não começa aqui, madame, começou há milhares de anos, quando nós descemos
das árvores para a savana e passamos a andar de pé, com a genitália exposta.
Como isto não as impressionou
muito, recorremos a outros meios de sedução. Brigas, guerras, atos de bravura e
audácia intelectual, boleros. Tudo para dormir com você, madame. Dormir com
você. Fazermos um programa maravilhoso num lugar discreto.
Champanhe, alguns canapês,
cortinas de veludo cerradas, um disco de vinil na vitrola (sou um homem
antigo). Não queremos outra coisa além de dormir com você. Nunca quisemos. E...
glubz! Desculpe madame. Acho que engoli o seu brinco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário