quinta-feira, 2 de maio de 2013



02 de maio de 2013 | N° 17420
L. F. VERISSIMO

O melhor

Era uma época cheia de perigos. Sarampo, caxumba, catapora, bicho-do-pé. Engolir chiclé era perigoso porque colava nas tripas. Fazer careta era perigoso porque, se batesse um vento, você ficaria com o rosto deformado pelo resto da vida. Pé descalço em ladrilho: pneumonia. Melancia com leite: morte certa. Banho depois de comer: congestão.

Um dia fizeram uma cabana num terreno baldio. Ainda havia terrenos baldios. A cabana era o mundo secreto deles, da turma. Ganhou um nome: Clube da Sacanagem. Ninguém precisava saber o que acontecia lá dentro. Os cigarros roubados de casa. As revistinhas. Mas a primeira coisa que o menino fez dentro da cabana foi comer melancia com leite e não morrer.

Com o tempo, os perigos mudavam. Desatenção na escola, falta de estudo, notas baixas: fracasso, nenhum futuro, ruína. Sexo sem camisinha: doença, gravidez indesejada, ruína. Amizades perigosas: drogas, dependência, nenhum futuro, ruína, morte.

– E banho depois da comida? A ironia não era entendida. – Pode.

O grande amor deixava olhar, mas estabelecera um ponto nas suas coxas do qual era proibido passar. Como o paralelo 38, que dividia as duas Coreias. E ela era rigorosa. No caso de transgressão, soavam os alarmes e havia o perigo até de intervenção americana.

Mas bom, bom mesmo, era o orgulho de um pião bem lançado, o prazer de abrir um envelope e dar com a figurinha rara que faltava no álbum, o volume voluptuoso de uma bola de gude daquelas boas entre os dedos, o cheiro de terra úmida, o cheiro de caderno novo, o cheiro inesquecível de Vick VapoRub.

Mas melhor do que tudo, melhor do que acordar com febre e não precisar ir à aula, melhor até do que fazer xixi em piscina, era passe de calcanhar que dava certo.

É ou não é?

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