quarta-feira, 3 de abril de 2013


ANTONIO PRATA

PEC & Pague

Encontrei Vanda, que cozinhava e lavava roupa em casa quando eu era criança, depois de dez anos

VANDA VINHA do interior da Bahia e de dentro de um livro de Charles Dickens. Caçula de nove filhos, aos sete anos foi dada pela mãe, incapaz de sustentá-la, a uma conhecida. Trabalhou de graça na casa da mulher até os 15, então pegou um ônibus e fugiu para São Paulo.

Quando eu ou minhas irmãs a importunávamos com nossas demandas de criança mimada, nos contava histórias da infância de gata borralheira, fazia-nos apertar seu nariz, quebrado por uma das filhas da "patroa" com um rolo de amassar pão e nos expulsava da cozinha: "Sai pra lá, peste, e me deixa acabar essa janta!".

Vanda cozinhava, limpava, lavava roupa e passava. Morava num quartinho nos fundos da casa, ao lado do tanque e da máquina de lavar roupa, aonde era vedada a minha entrada. Às vezes, a via pela porta entreaberta: de bobes na cabeça, falando ao telefone ou pintando as unhas dos pés, sob o lusco-fusco da TV preto e branco.

Nos fins de semana, arrumava-se toda e ia para a casa de umas primas, na periferia. Um domingo, levou-me junto, para um churrasco. Lembro de ter me saído estranhamente bem no futebol com os meninos da rua, lembro de mulheres curiosas pegando no meu cabelo loiro, lembro das gargalhadas que explodiram quando apontei a carne na grelha e perguntei se era picanha.

Levei muitos anos para entender a graça da minha pergunta. Levei muitos anos, também, para entender por que não nos referíamos à Vanda como "nossa empregada", mas como "a moça que trabalha lá em casa" -tentativa inútil de contornar o incômodo daquela anacrônica e persistente relação.

Vanda viveu e trabalhou conosco por 15 anos. Depois que crescemos e saímos de casa, minha mãe e meu padrasto resolveram não ter mais uma empregada morando lá. Falaram com amigos e arrumaram outra família para Vanda trabalhar. A patroa nova foi pegá-la uma noite, depois do jantar -a mudança da Vanda coube no porta-malas do carro.

Fiquei dez anos sem vê-la. Em 2011, caminhando por uma praia do litoral norte, ouvi um grito: "Tunim!". Ali estava ela, fazendo um castelo de areia, com os filhos da patroa. "Meu menino, meu menino!", ela repetia, me abraçando e chorando -eu fiquei tocado, mas não chorei. Naquela tarde, contou-me que ia se aposentar e voltar pra Bahia, onde estava terminando de construir uma casa, com suas economias. Ano passado, ela voltou: aos 60 e tantos anos, pela primeira vez desde os sete, dormiu num quarto que não pertencia a seus patrões.

Estranha sensação ao escrever esta crônica. Parece que falo da minha infância de menino de engenho, no interior de Pernambuco, no século 19, não da infância de um filho de jornalistas, numa casa geminada no Itaim Bibi, no final do século 20. Estranheza que confirma a profecia de Joaquim Nabuco (relembrada por Caetano Veloso, em "Noites do Norte"): "A escravidão permanecerá por muitos anos como a característica nacional do Brasil".

Característica que, lentamente, vamos deixando para trás, no início do século 21. Lentamente, pois ser empregada com FGTS, caixa de supermercado ou atendente de telemarketing ainda é muito pouco diante do que a vida pode oferecer -mesmo comendo picanha ou tomando banho com sabonete Dove.

antonioprata.folha@uol.com.br

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