ANTONIO
PRATA
PEC & Pague
Encontrei
Vanda, que cozinhava e lavava roupa em casa quando eu era criança, depois de
dez anos
VANDA
VINHA do interior da Bahia e de dentro de um livro de Charles Dickens. Caçula
de nove filhos, aos sete anos foi dada pela mãe, incapaz de sustentá-la, a uma
conhecida. Trabalhou de graça na casa da mulher até os 15, então pegou um ônibus
e fugiu para São Paulo.
Quando
eu ou minhas irmãs a importunávamos com nossas demandas de criança mimada, nos
contava histórias da infância de gata borralheira, fazia-nos apertar seu nariz,
quebrado por uma das filhas da "patroa" com um rolo de amassar pão e
nos expulsava da cozinha: "Sai pra lá, peste, e me deixa acabar essa janta!".
Vanda
cozinhava, limpava, lavava roupa e passava. Morava num quartinho nos fundos da
casa, ao lado do tanque e da máquina de lavar roupa, aonde era vedada a minha
entrada. Às vezes, a via pela porta entreaberta: de bobes na cabeça, falando ao
telefone ou pintando as unhas dos pés, sob o lusco-fusco da TV preto e branco.
Nos
fins de semana, arrumava-se toda e ia para a casa de umas primas, na periferia.
Um domingo, levou-me junto, para um churrasco. Lembro de ter me saído
estranhamente bem no futebol com os meninos da rua, lembro de mulheres curiosas
pegando no meu cabelo loiro, lembro das gargalhadas que explodiram quando
apontei a carne na grelha e perguntei se era picanha.
Levei
muitos anos para entender a graça da minha pergunta. Levei muitos anos, também,
para entender por que não nos referíamos à Vanda como "nossa empregada",
mas como "a moça que trabalha lá em casa" -tentativa inútil de
contornar o incômodo daquela anacrônica e persistente relação.
Vanda
viveu e trabalhou conosco por 15 anos. Depois que crescemos e saímos de casa,
minha mãe e meu padrasto resolveram não ter mais uma empregada morando lá. Falaram
com amigos e arrumaram outra família para Vanda trabalhar. A patroa nova foi
pegá-la uma noite, depois do jantar -a mudança da Vanda coube no porta-malas do
carro.
Fiquei
dez anos sem vê-la. Em 2011, caminhando por uma praia do litoral norte, ouvi um
grito: "Tunim!". Ali estava ela, fazendo um castelo de areia, com os
filhos da patroa. "Meu menino, meu menino!", ela repetia, me abraçando
e chorando -eu fiquei tocado, mas não chorei. Naquela tarde, contou-me que ia
se aposentar e voltar pra Bahia, onde estava terminando de construir uma casa,
com suas economias. Ano passado, ela voltou: aos 60 e tantos anos, pela
primeira vez desde os sete, dormiu num quarto que não pertencia a seus patrões.
Estranha
sensação ao escrever esta crônica. Parece que falo da minha infância de menino
de engenho, no interior de Pernambuco, no século 19, não da infância de um
filho de jornalistas, numa casa geminada no Itaim Bibi, no final do século 20. Estranheza
que confirma a profecia de Joaquim Nabuco (relembrada por Caetano Veloso, em "Noites
do Norte"): "A escravidão permanecerá por muitos anos como a característica
nacional do Brasil".
Característica
que, lentamente, vamos deixando para trás, no início do século 21. Lentamente,
pois ser empregada com FGTS, caixa de supermercado ou atendente de
telemarketing ainda é muito pouco diante do que a vida pode oferecer -mesmo
comendo picanha ou tomando banho com sabonete Dove.
antonioprata.folha@uol.com.br
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