JOÃO
PEREIRA COUTINHO
OS FILHOS FANÁTICOS
A
natureza do horror não está nos manuais; está em pequenas obras-primas da
literatura contemporânea
DEPOIS
DOS atentados de Boston, a pergunta: serão terroristas genuinamente americanos,
como Timothy McVeigh? Ou serão terroristas americanos convertidos ao
fundamentalismo "religioso" (um eufemismo para evitar a palavra "islâmico")?
Nenhuma
conclusão apressada. Esperei para ver. E ler. Nas horas seguintes, nos dias
seguintes, começaram a surgir pormenores.
Dois
suspeitos. De origem tchetchena. O puzzle começava a compor-se: os tchetchenos
não são conhecidos por seguirem a religião cristã (ou judaica). Mas, por outro
lado, a inimizade tchetchena tem Moscou como alvo, não Washington (ou Boston). Uma
inimizade política, não religiosa.
O círculo
policial começou a fechar-se. Os dois suspeitos, os dois tchetchenos, eram irmãos.
E o mais velho, que começou a ter influência letal sobre o mais novo, foi
encontrando nos preceitos corânicos o tipo de "identidade" que ele não
encontrava na sociedade americana de acolhimento.
Foi
o adeus ao álcool. O adeus ao fumo. E a condenação violenta do rasteiro
materialismo americano, um clássico do islamismo radical desde Sayyd Qutb (1906""1966),
o teórico da Irmandade Muçulmana que visitou os Estados Unidos em finais da década
de 1940 e deixou uma "bíblia" fanática a respeito.
Os
dois suspeitos, os dois tchetchenos, os dois irmãos eram, Deus nos perdoe, dois
jihadistas em solo americano?
Aqui,
o pânico da mídia ocidental "progressista" voltou a soar mais forte. Já
ninguém discutia esses pormenores. A estratégia era outra: martelar até a
insanidade que não existe nenhuma relação entre o islã e o terrorismo.
Concordo.
Digo mais: não há nenhuma relação entre o islamismo, o cristianismo ou judaísmo
e atos criminosos contra inocentes. Pelo contrário, as três religiões condenam
expressamente esses atos.
Só que
essa não é a questão. Nunca foi. A questão é a inversa: saber se existe uma
relação entre atos terroristas e a interpretação que os próprios terroristas
fazem da religião islâmica. Pretender silenciar o debate com a proclamação
infantil "nem todos os muçulmanos são terroristas!" é o mesmo que
condenar qualquer crítica ao Estado de Israel como antissemita.
Comigo
não, violão. É possível criticar racionalmente Israel. E é possível constatar a
desproporcionalidade de atos de terrorismo cometidos por inspiração islamita. Relembrar
uma evidência é o primeiro passo para compreender a natureza do horror.
E
essa natureza não está nos manuais de filosofia, ou de história, ou de ciência
política. Está em pequenas obras-primas da literatura contemporânea como o profético
conto de Hanif Kureishi intitulado "My Son the Fanatic" (1994).
Foram
vários os editoriais que, a respeito de Boston, prestaram homenagem ao conto e
ao próprio Kureishi. Justíssimo. Como escritor, sempre defendi que Kureishi
merece o mesmo respeito que Ian McEwan ou Julian Barnes, seus colegas de geração.
E o
conto é um primoroso retrato sobre a radicalização de um imigrante paquistanês
de "segunda geração" em solo britânico.
Digo
"segunda geração" porque Kureishi capta o essencial do novo terror: ao
contrário dos pais, que viajaram para o Ocidente em busca de uma vida melhor, é
precisamente essa "vida melhor" que inquieta os filhos.
Confrontados
com o pluralismo das sociedades abertas, onde a frustração de expectativas faz
parte do jogo da liberdade, há nos filhos uma busca desesperada por um sistema
total (e totalitário) que os salve do caos ético e epistemológico dessas
sociedades.
O
que para os pais é um sonho (viverem livres do dogmatismo doméstico), para os
filhos é um pesadelo. Por isso eles fantasiam o exato dogmatismo de que os pais
fugiram.
No
conto de Kureishi, esse abismo está presente no diálogo tenso entre o pai e o
filho: o primeiro, bebendo um uísque e tentando convencer o filho a desfrutar a
vida; e o segundo, enojado com os uísques do pai, respondendo que há coisas
mais importantes para fazer do que simplesmente desfrutar a vida.
Como
disse um dos irmãos tche- tchenos, "eu não tenho nenhum amigo americano".
E acrescentou: "Eu nem sequer os entendo." Eis o primeiro passo para
o terror: olhar para as vítimas, não como nossos semelhantes, mas como seres
inferiores e estranhos que não merecem sobreviver.
Nenhum comentário:
Postar um comentário