FERREIRA
GULLAR
Ciência e
paciência
Nem
sempre a sabedoria dos mais velhos ajuda os mais jovens. O jovem quer errar,
precisa errar
Houve
época em que a idade era tida como qualidade, mas, de uns tempos para cá, caiu
em descrédito. Nos anos 60, tornou-se comum dizer-se que não se devia confiar
em ninguém que tivesse mais de 30 anos. Descobriu-se, então, que ser jovem era
o único valor real e que a chamada sabedoria dos mais velhos era simples
balela.
Os
que diziam isso, naquela época, hoje têm mais de 50 anos e não sei se continuam
a afirmar a mesma coisa ou se ensinam a seus filhos o que aprenderam com a
idade.
Por
exemplo, que o consumo de drogas, a que se entregavam entusiasticamente naquela
época, levou muitos amigos seus à loucura ou à morte precoce. Mas, se o
fizerem, correm o risco de ouvir deles que não confiam em ninguém que tenha
mais de 30 anos de idade, pois foi o que aprenderam com os próprios pais.
De
fato, aos 20 anos, a gente não sabe muito da vida. Tampouco os mais velhos
sabem tudo. Se aquela frase irreverente expressava a necessidade de uma geração
de romper com os valores estabelecidos e entregar-se ao desvario beatnik, há
que levar em conta que cabe aos jovens inventar a própria vida e, para isso,
têm que, às vezes, não ouvir os conselhos dos pais.
É
que nem sempre a sabedoria dos mais velhos ajuda os mais jovens. E mais que
isso, o jovem quer errar, precisa errar, porque é errando que se aprende. Não
adianta a mãe advertir o filhinho de não tocar o dedo na chama da vela, pois
fogo queima. Ele só acreditará depois de queimar o dedo.
Bem,
toda essa conversa vem a propósito de minha irritação com a barulheira desta
rua onde moro. Desta vez, foi um vendedor de laranjas que apregoava as virtudes
de sua mercadoria, berrando num alto-falante posto em cima de uma caminhonete.
Minha
filha Luciana, que me visitava na ocasião, preocupada com meu estado de
espírito, aconselhou-me a mudar de apartamento e buscar uma rua tranquila, como
aquela onde mora. Minha reação a seu conselho deve tê-la surpreendido.
--
Sair eu deste apartamento onde moro há 30 anos?! Nunca! Já pensou na quantidade
de livros que teria que transportar e rearrumar na outra casa? Prefiro
enlouquecer aqui mesmo.
Foi
a minha primeira reação. Logo, mudei de tom e lembrei-lhe de que, mal me
instalara aqui, descobri que, sob meu quarto de dormir, funcionava uma boate.
Iniciou-se uma luta que durou anos e que terminei vencendo. Se não saí naquela
época, não seria agora que o faria.
E
quando os meninos da vizinhança passaram a jogar bola embaixo de minha janela?
Era todos os dias, no final da tarde. Eles, na verdade, menos jogavam do que
gritavam, se esgoelavam. Um inferno.
Desesperado,
comecei a engendrar um plano para acabar com aquilo e concluí que o mais eficaz
seria quebrar meia dúzia de garrafas e jogar os cacos de vidro na calçada.
Encontrada a solução, fui dormir naquela noite mais conformado, sem calcular as
consequências daquele plano. Sucedeu que, dois dias depois, à hora de sempre,
não houve a pelada. Nem no dia seguinte, nem nunca mais.
Achei
ótimo, mas não me dei ao trabalho de refletir sobre o fato. Não muito depois,
foi um vendedor de uvas que, todos os dias, a partir das três da tarde,
começava a gritar num alto-falante: "Uvas por dois reais! É só hoje e não
tem mais!".
Isso
durou semanas, mas um dia acabou também. Senti-me aliviado e não pensei mais no
assunto, mesmo porque o que nos desagrada a gente trata, se possível, de
esquecer.
E
não é que, certa noite, dois caras começaram a conversar aos berros debaixo da
minha janela. Além do berro em si mesmo, irrita-me especialmente o fato de que
o sujeito está junto do outro, mas berra como se estivesse do outro lado da
rua.
Tive
vontade de descer, ir até eles e lhes dar um esporro. Mas pensei um pouco, fui
até a cozinha tomar um gole d' água e, quando voltei à sala, eles tinham ido
embora ou se calado. Então refleti: se eu tivesse dado um esporro neles, teria
ganho dois inimigos e eles, para me irritar, estariam possivelmente berrando
até agora. E ainda teria ganho dois inimigos.
Terminei
aprendendo: espere passar, pois tudo passa. A sabedoria é ter paciência e não
se estressar nem brigar. Mas isso só se aprende com a idade.
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