FERREIRA
GULLAR
Cultura e
terror
As
diversas concepções religiosas e políticas podem levar os homens a divergências
insuperáveis
Essa
minha ideia de que o homem é, sobretudo, um ser cultural, não deve ser
entendida como uma visão idealizada e otimista, pelos simples fato de que isso
o distingue dos outros seres naturais.
Se
somos seres culturais, se pensamos e com nosso pensamento inventamos os valores
que constituem a nossa humanidade, diferimos dos outros animais, que se atêm a
sua animalidade e agem conforme suas necessidades vitais imediatas.
Entendo
que, ao contrário dos outros animais, o homem nasceu incompleto e, por essa
razão, teve de inventar-se e inventar o mundo em que vive. Por exemplo, um
bisão ou um tigre nasce com todos os recursos necessários à sua sobrevivência,
mas o homem, para caçar o bisão, teve que inventar a lança.
Isso,
no plano material. Mas nasceu incompleto também no plano intelectual, porque é
o único animal que se pergunta por que nasceu, que sentido tem a existência.
Para responder a essas e outras perguntas, inventou a religião, a filosofia, a
ciência e a arte.
Assim,
construiu, ao longo da história, uma realidade cultural, inventada, que alcança
hoje uma complexidade extraordinária e fascinante. O homem deixou de viver na
natureza para viver na cidade que foi criada por ele.
Mas,
o fato mesmo de se inventar como ser cultural criou-lhe graves problemas,
nascidos, em grande parte, daqueles valores culturais. É que, por serem
inventados, variam de uma comunidade humana para outra, gerando muitas vezes
conflitos insuperáveis. As diversas concepções filosóficas, religiosas,
estéticas e políticas podem levar os homens a divergências insuperáveis e até
mesmo a conflitos mortais.
Pode
ser que me engane, mas a impressão que tenho é de que o homem, por ser
essencialmente os seus valores, tem que afirmá-los perante o outro e obter dele
sua aceitação. Se o outro não os aceita, sente-se negado em sua própria
existência. Daí por que, a tendência, em certos casos, é levá-lo a aceitá-los
por bem ou por mal. Chega-se à agressão, à guerra.
Certamente,
nem sempre é assim, depende dos indivíduos e das comunidades humanas; depende
sobretudo de quais valores os fundamentam.
De
modo geral, é no campo da religião e da política que a intolerância se
manifesta com maior frequência e radicalismo. A história humana está marcada
por esses conflitos, que resultaram muitas vezes em guerras religiosas, com o
sacrifício de centenas de milhares de vidas.
Com
o desenvolvimento econômico e ampliação do conhecimento científico, a questão
religiosa caiu para segundo plano, enquanto o problema ideológico ganhou o
centro das atenções.
A
questão da riqueza, da desigualdade social e consequentemente da justiça social
tornou-se o núcleo dos conflitos entre as classes e o poder político. Esse
fenômeno, que se formou em meados do século 19, ocuparia todo o século 20, com
o surgimento dos Estados socialistas. O ápice desse conflito foi a Guerra Fria,
resultante do antagonismo entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Surpreendente,
porém, é que, em pleno século do desenvolvimento científico e tecnológico,
tenha eclodido uma das expressões mais irracionais da intolerância religiosa: o
terrorismo islâmico, surgido de uma interpretação fanatizada daquela doutrina.
O
terrorismo não nasceu agora mas, a partir do conflito entre judeus e
palestinos, lideranças fundamentalistas islâmicas o adotaram como arma de uma
guerra santa contra a civilização ocidental, que não segue as palavras sagradas
do Corão.
Em
consequência disso, homens e mulheres jovens, transformados em bombas humanas,
não hesitam em suicidar-se inutilmente, convencidos de que cumprem a vontade de
Alá e serão recompensados com o paraíso.
Parece
loucura e, de fato, o é, mas diferente da doença psíquica propriamente dita. É
uma loucura decorrente do fanatismo político ou religioso, que muda o amor a
Deus em ódio aos infiéis.
Embora
o Corão condene o assassinato de inocentes, na opinião dos promotores de tais
atentados --que matam sobretudo inocentes-- só é proibido matar os
"nossos" inocentes, como afirmou Bin Laden, não os inocentes
"deles".
Tudo
isso mostra que o homem é mesmo um ser cultural, mas que a cultura tanto pode
nos transformar em santos como em demônios.
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