CONTARDO
CALLIGARIS
Mulheres infelizes
As
mulheres têm sonhos que vão além de marido, família e uma vida ao abrigo da necessidade
François
Mauriac publicou "Thérèse Desqueyroux" (Cosac Naify) em 1927; o
romance foi um sucesso e, provavelmente, valeu ao seu autor o prêmio Nobel. A
história é levada para o cinema (pela segunda vez) por Claude Miller, com o título,
no Brasil, de "Therese D." (para que ninguém se atrapalhe com a pronúncia).
Tolstói
publicou "Anna Karenina" (Itatiaia) entre 1873 e 77. O romance é levado
para o cinema (pela sexta vez) por Joe Wright, com o título original.
Gustave
Flaubert publicou "Madame Bovary" (Penguin Companhia e outras
editoras) em 1857. O romance foi levado oito vezes para o cinema.
No
Rio e em São Paulo, ainda é possível assistir a "Anna Karenina", de
Joe Wright, e a "Therese D.", de Claude Miller, no mesmo cinema.
Depois
disso, recomendo se enfiar na cama com uma cópia de "Madame Bovary" e
ler até o amanhecer. Ou, então, na mesma cama, assistir a um DVD de "Madame
Bovary" na versão de Vincente Minnelli (1949 --inesquecível Jennifer Jones
perdida em devaneios) ou na de Claude Chabrol (1991).
Receio
que a versão de Jean Renoir, de 1933, tenha envelhecido, mas que cada um
escolha.
É sábio
juntar as três histórias? Em termos; se você for um homem casado, prudência: afinal,
trata-se de três mulheres infelizes com o marido, que é provedor, fiel, gentil
e insosso.
Para
mim, a modernidade poderia (ou deveria) começar, exemplarmente, com essas três
histórias de insatisfação feminina, ou seja, com a descoberta de que as
mulheres têm sonhos e devaneios que vão além de um marido devoto, de uma família
e de uma vida ao abrigo da necessidade --em outras palavras, com a descoberta
de que existe um desejo feminino.
Claro,
talvez alguns homens prefiram pensar que o desejo feminino seja apenas uma
necessidade do capitalismo moderno. As mulheres insatisfeitas seriam as
consumidoras deslumbradas, perdidas pelos grandes magazines, das quais a
sociedade de consumo precisa. É o que deixa esperar "O Paraíso das Damas",
de Emile Zola, de 1882-83, (Estação Liberdade).
Mas
o desejo feminino é mais do que isso, e sua aparição implica uma séria crise
masculina. No fundo, trata-se de uma descoberta só: as mulheres têm desejos, e
os homens não fazem suas companheiras tão felizes quanto eles imaginam ter
feito a felicidade de suas mães (repito: IMAGINAM).
Não é
por acaso, aliás, que, nos três romances, a maternidade não faz a felicidade
das mães. A descoberta do desejo feminino acompanha a descoberta da inadequação
e da insuficiência dos homens, como maridos e também como filhos.
Para
Anna Karenina e para Emma Bovary, outros homens do que seus maridos se tornam
desejáveis. Mas são todos medíocres (Vronsky como Rodolphe, como Léon).
Tanto
Anna quanto Emma são julgadas por seus narradores. As duas acabam mal, e talvez
essa punição final de mulheres e mães "indignas" tornasse os romances
aceitáveis (embora os dois tenham escandalizado seus contemporâneos).
Thérèse
é mais moderna. À diferença de Emma, ela é uma verdadeira leitora, não uma vítima
de romances melados; por isso mesmo, ela não conhece a raiz de sua insatisfação
com a vida que lhe cabe.
Como
a gente, Thérèse não sabe o que quer. E ela não sonha propriamente com outro
homem: ela é mais profundamente infiel e traidora do marido, pois ela sonha com
algo maior do que um amante, ela quer algo que ela não saberia dizer sem citar "Os
Frutos da Terra", de Gide, ela quer uma outra intensidade da vida.
SPOILER:
pule este breve parágrafo se você não conhece a história. No fim do romance (e
do filme), Thérèse não será punida pela infidelidade de seu desejo, ao contrário,
ela parece se transformar na nova mulher do século 20, livre e urbana.
Mauriac
era cristão e tradicionalista. Em 1935, ele não se aguentou e escreveu a
continuação de "Thérèse Desqueyroux", "La Fin de la Nuit" (o
fim da noite), em que Thérèse acaba pior do que suas antecessoras, Emma e Anna.
O
jovem Sartre defendeu Thérèse, acusando Mauriac de julgar, perseguir e condenar
a própria personagem que ele tinha criado, ou seja, de não respeitar a
liberdade de Thérèse Desqueyroux, sua adorável criatura. Concordo com Sartre.
Fato
curioso, tanto "Anna Karenina" quanto "Therese D." foram
maltratados por críticos que respeito. Os dois filmes têm méritos diferentes ("Anna
Karenina", em particular, é genial no conceito e na arte), mas talvez eles
tenham mesmo um "defeito" comum: contam histórias que não acalentam
os ouvidos masculinos.
ccalligari@uol.com.br
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