04
de abril de 2013 | N° 17392
L.
F. VERISSIMO
As outras
sepulturas
Sempre
é bom começar citando Hegel. Porque dá uma certa classe ao texto e porque, a
partir de Hegel, você pode ir para qualquer lado, para a esquerda e/ou para a
direita. Marx afiou suas teses criticando e às vezes assimilando Hegel, e
Hegel, ao mesmo tempo em que sacudia o pensamento conservador europeu, era o exemplo
mais acabado do que Marx abominava, o filósofo que explicava o mundo em vez de
tentar mudá-lo.
Mas
minha citação de Hegel não tem nada a ver com esta divisão, mesmo porque é uma
que todo mundo – a partir da redescoberta da peça no século 18 – endossaria.
Hegel disse que a Antígona, de Sófocles, era o mais sublime produto da mente
humana, e sua heroína a mais admirável personagem, da História.
Escrita
400 anos antes de Cristo, a peça conta a história da filha de Édipo, rei de
Tebas, com a sua mulher (e mãe, lembra?), Jocasta. Antígona quer enterrar seu
irmão, morto num ataque a Tebas, contrariando as ordens do rei Creonte, para
quem o corpo do traidor, que permanecerá insepulto, pertence ao Estado e não à
sua família.
Antígona
rouba o corpo do irmão para que sua alma, sem os ritos fúnebres, não se perca
no mundo dos mortos, e o sepulta no meio da noite. Para punir sua
desobediência, Creonte a condena a ser enterrada viva. Muitos conflitos são
desnudados na peça, mas o principal deles é entre o Estado e o indivíduo, entre
a lei fria e costumes antigos, entre o direito do soberano e o direito do
sangue comum.
O
fascínio da peça para Hegel e outros tem muito a ver com o renascente interesse
pela cultura grega na Europa de então mas também com a revolução que acontecia
nas relações estado/cidadão no explosivo começo do século 19.
A
história de Antígona se adapta ao momento no Brasil, quando se tenta investigar
o que permanece simultaneamente enterrado e insepulto no nosso passado, tantos
anos depois do fim da ditadura.
Os
corpos ainda não foram devolvidos às suas famílias, os direitos do sangue ainda
não se impuseram aos direitos do Estado algoz, os ritos fúnebres de muitos
continuam restritos à imaginação de novas Antígonas, tão trágicas quanto a
Antígona grega. Os arquivos da ditadura estão sendo aos poucos desenterrados.
Já passou da hora de abrir as outras sepulturas.
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